Para muitos entusiastas em videogame, a década de 1990 foi o berço de grandes franquias que deixaram sua marca na história dos videogames. Resident Evil respira essa época como nenhum outro.
Foi um período de profunda inovação criativa, onde ideias ousadas e tecnologias emergentes convergiram de maneira quase mágica.
Então, em 1996, como se a indústria estivesse prestes a atravessar um portal rumo a uma nova era, os jogadores testemunharam uma transformação emocionante que redefiniria para sempre os rumos do entretenimento eletrônico.
A indústria começava a abraçar os gráficos 3D, mas poucos imaginavam o que estava prestes a surgir no horizonte: um jogo que não só redefiniria o gênero de terror, mas também influenciaria profundamente a forma como os jogadores experimentariam o videogame.
Esse jogo era Resident Evil, ou como foi chamado no Japão, Biohazard.
No entanto, o que parecia ser apenas mais um título promissor da Capcom na época escondia uma história de bastidores recheada de desafios técnicos, orçamentos apertados e inspirações cinematográficas que talvez os mais jovens desconheçam.
Aliás, seria impossível falar sobre a origem de Resident Evil sem entender o contexto em que ele foi criado.
Era uma época em que os jogos com gráficos em 3D ainda estavam engatinhando, e os desenvolvedores estavam experimentando como transportar as emoções intensas e angustiantes de filmes e obras literárias para esse mundo interativo.
Shinji Mikami, um nome que se tornaria lendário, estava longe de ser uma aposta óbvia para liderar o projeto. Ele era jovem, inexperiente, mas carregava uma visão única que mudaria tudo. Mal sabia ele que, anos depois, seu trabalho seria comparado a grandes clássicos do cinema, como A Noite dos Mortos-Vivos de George Romero.
O início de Resident Evil foi marcado por uma série de limitações – técnicas, financeiras e criativas. Porém, foi justamente essa restrição que moldou o jogo.
Cada porta que você abre, cada zumbi que aparece cambaleando do fundo do corredor, cada ruído de passos ecoando em um silêncio assustador… Tudo isso foi criado em um cenário de pura reinvenção.
Como dizem, a criatividade floresce quando há obstáculos.
Nesse documentário, vamos mergulhar na gênese de Resident Evil: desde suas raízes como um remake espiritual de um obscuro jogo japonês até o momento em que ele se transformou em um marco cultural global.
Exploraremos os bastidores da Capcom, as influências cinematográficas e literárias que deram forma ao terror do primeiro jogo e as decisões ousadas que ajudaram a criar o gênero survival horror.
Então, prepare-se para explorar cada corredor escuro e cada bastidor iluminado pela paixão de uma equipe disposta a arriscar tudo para fazer história. Afinal, essa é a verdadeira origem de Resident Evil.
A Ideia por Trás de Resident Evil e Como Tudo Começou
Capcom, início dos anos 1990.
Em um canto, desenvolvedores exaustos ajustam os últimos sprites de fogo em Street Fighter II, enquanto em outro, ideias para o próximo Mega Man são rabiscadas em folhas de papel já amassadas.
Apesar de estar colhendo os frutos de seus sucessos arcade, a gigante japonesa sabia que algo estava mudando.
Após uma grande crise econômica capaz de alterar o padrão de consumo da população (estouro da bolha imobiliária e financeira), o mercado japonês apontava para novas experiências, e o futuro dos jogos residia nas casas dos jogadores, não mais nos fliperamas.
A chegada meteórica do PlayStation estava mudando completamente como os videogames eram encarados. Agora um público mais amplo se interessava por videogames e suas temáticas mais adultas.
Foi nesse cenário de transição que um projeto inusitado começou a tomar forma – uma ideia que uniria o medo primitivo do desconhecido à tecnologia em ascensão. Uma ideia que colocaria os jogadores frente a frente com o verdadeiro horror.
Vale mencionar que a Capcom já havia flertado com os jogos de terror antes.
Em 1989, Tokuro Fujiwara, um veterano criador de jogos, lançou Sweet Home para o Famicom, um título de RPG baseado em um filme de terror japonês de mesmo nome.
Com sua ambientação em uma mansão amaldiçoada, foco em sobrevivência e resolução de puzzles, o jogo plantou a semente do que mais tarde seria conhecido como survival horror.
Porém, Fujiwara sabia que o conceito ainda tinha potencial inexplorado. Quando o hardware do PlayStation 1 conseguiu emplacar totalmente os gráficos 3D, ele viu a oportunidade perfeita para ressuscitar a ideia.
Foi aí que ele convocou um jovem designer chamado Shinji Mikami para assumir a missão.
E aqui está a ironia: Mikami não gostava de filmes de terror.
Sim, o homem que se tornaria uma lenda no gênero não suportava o desconforto causado por obras assustadoras.
Mas talvez fosse exatamente essa relação de amor e ódio que o tornasse a escolha ideal.
Fujiwara acreditava que Mikami poderia olhar para o terror de uma maneira diferente – algo que não fosse apenas assustador, mas profundamente imersivo. E Mikami aceitou o desafio, ainda que relutante.
Inicialmente, o projeto era simples, se tratando de um “remake espiritual” de Sweet Home.
A ideia era pegar o núcleo do jogo original e atualizá-lo para os padrões modernos. Só que, logo ficou claro que Resident Evil precisava ser muito mais do que isso.
Mikami queria criar algo que transcendesse o RPG tradicional e que capturasse a atmosfera opressora dos filmes de terror. Foi nesse ponto que as referências cinematográficas começaram a se infiltrar.
Mikami assistiu repetidamente a A Noite dos Mortos-Vivos de George Romero, absorvendo cada cena de zumbis cambaleantes e cada segundo de tensão sufocante.
“Eu queria que o jogador sentisse o mesmo tipo de pavor que eu senti ao assistir esses filmes”, disse Mikami em entrevistas anos depois.
Mas o jogo não seria apenas sobre zumbis. Mikami e sua equipe decidiram ambientar a história em uma mansão isolada – uma decisão tanto artística quanto técnica.
A mansão não apenas evocava o charme gótico de clássicos literários como Drácula e Frankenstein, mas também ajudava a disfarçar as limitações de hardware do PlayStation.
Corredores apertados e cômodos confinados não só eram mais fáceis de renderizar, mas também amplificavam a sensação de claustrofobia. A mansão Spencer, com seus segredos sombrios e armadilhas mortais, tornou-se o Core de Resident Evil.
Até ali, parecia tudo lindo no papel, mas a equipe enfrentaria desafios a cada passo. Muitos dos desenvolvedores eram jovens e inexperientes, e a ideia de criar um jogo completamente em 3D era intimidante.
Mikami, que é um perfeccionista por natureza, insistia em revisar detalhes minuciosos, desde o design das criaturas até o comportamento das portas ao abrir. “Cada porta tinha que contar uma história”, ele dizia. E essa obsessão por detalhes é visível em cada aspecto do jogo.
Outro obstáculo era como equilibrar o terror e o gameplay. Mikami acreditava que o medo vinha do desconhecido e da vulnerabilidade. Por isso, ele insistiu em recursos que se tornariam marcas registradas do gênero survival horror: munição escassa, itens limitados e inimigos que poderiam aparecer quando menos se espera.
“Queria que o jogador sentisse que estava constantemente à beira do abismo” Shinji Mikami
Por fim, a Capcom estava apostando em um conceito que poucos na indústria entendiam na época. O próprio nome original do jogo, Biohazard, enfrentou problemas legais nos Estados Unidos por conflitos com outra marca registrada.
Isso levou a equipe a rebatizar o projeto como Resident Evil, um título que capturava perfeitamente o clima opressor e a localização central do jogo.
O que começou como um experimento tímido e cheio de incertezas estava se transformando em algo muito maior. Mikami e sua equipe estavam criando não apenas um jogo, mas um fenômeno cultural. E eles ainda não tinham ideia de que estavam prestes a inaugurar um novo gênero de videogames.
O Desenvolvimento Limitado (Mas Ambicioso)
O ano era 1994 e Shinji Mikami, junto com sua pequena equipe já haviam estabelecido a espinha dorsal do que seria Resident Evil.
Mas, transformar essa visão em um jogo real era uma tarefa que beirava o impossível, dadas as limitações.
Se há uma palavra que define o desenvolvimento do primeiro Resident Evil, essa palavra é CAOS.
A equipe responsável pelo jogo era composta, em grande parte, por desenvolvedores inexperientes, e Shinji Mikami, apesar de talentoso, nunca havia dirigido um projeto dessa escala antes.
A Capcom acreditava no potencial do projeto, mas o orçamento era limitado e ninguém sabia ao certo se um título de terror lento e estratégico teria apelo comercial.
A incerteza era tanta que Resident Evil quase se tornou um jogo de ação. A Capcom temia que o ritmo do jogo fosse arrastado demais para o público acostumado com títulos frenéticos como Doom e Contra.
Durante parte do desenvolvimento, considerou-se aumentar o número de inimigos e tornar o combate mais ágil.
No entanto, Mikami defendeu a ideia de que o medo vinha da vulnerabilidade – munição escassa, movimentação lenta e encontros imprevisíveis com criaturas horrendas. No fim, sua visão venceu, e o survival horror nasceu.
Mas as mudanças não pararam por aí. O primeiro roteiro do jogo era bem diferente: não havia Umbrella Corporation, nem vírus, nem armas biológicas.
O conceito a principia iria envolver elementos sobrenaturais, como fantasmas e demônios, em uma mansão amaldiçoada. No entanto, a Capcom achou que isso não combinava com o tom mais “realista” que Mikami queria, então a história foi reformulada para incluir experimentos científicos e a icônica trama de conspiração.
Os monstros de Resident Evil também passaram por diversas reformulações até chegar no ponto certo. Mikami queria que as criaturas parecessem “erros grotescos da ciência”, e as principais inspirações vieram de filmes como Alien e O Enigma de Outro Mundo.
O Hunter, por exemplo, foi baseado em répteis mutantes, enquanto o Tyrant foi projetado para ser uma fusão de força bruta e terror biológico.
A Capcom queria um título inovador para o recém-lançado PlayStation, algo que explorasse o poder daquele console, só que ninguém ali tinha experiência suficiente para desenvolver um jogo 3D daquele tipo.
O orçamento era apertado, a equipe era jovem e a tecnologia recente ainda era um bicho de sete caberças. E, ironicamente, foram essas limitações que forçaram a equipe a reinventar as regras do medo.
O Inferno Técnico: Criando o Horror no PlayStation 1
Mikami queria um jogo completamente tridimensional, mas logo percebeu que o hardware do PlayStation não estava à altura dessa ambição.
Os testes iniciais com ambientes totalmente em 3D eram um desastre: texturas borradas, quedas drásticas na taxa de quadros e personagens que pareciam bonecos de massinha deformados.
A solução veio de um golpe de genialidade (ou desespero): usar cenários pré-renderizados em vez de ambientes tridimensionais completos. Assim, cada tela do jogo seria como uma pintura detalhada, e os personagens seriam os únicos elementos em 3D de verdade se movimentando sobre essas imagens estáticas.
Isso permitia que a mansão Spencer tivesse um visual impressionante para a época, ao custo de movimentação mais engessada e ângulos de câmera fixos.
Esses ângulos de câmera, aliás, acabaram se tornando um dos aspectos mais icônicos do jogo. E não foi uma escolha puramente artística – era uma gambiarra técnica disfarçada de genialidade.
Como a câmera fixa só mostrava partes do cenário, a equipe poderia economizar processamento e memória ocultando áreas fora da tela. Isso também ajudava na criação do suspense.
Cada nova tela era um salto no desconhecido. Um corredor podia parecer vazio, mas a câmera propositalmente posicionada podia esconder um zumbi esperando logo na esquina.
Quem estivesse jogando nunca tinha certeza do que vinha a seguir. O medo estava nas lacunas da visão.
Outro conceito descartado foi um modo cooperativo. Inicialmente, a ideia era permitir que dois jogadores explorassem a mansão Spencer juntos, mas a equipe logo percebeu que o hardware do PlayStation não conseguiria lidar com dois personagens simultaneamente nos cenários pré-renderizados.
O recurso foi descartado, mas essa ideia ressurgiria anos depois em jogos como Resident Evil Zero e Resident Evil 5.
E enquanto a equipe de Mikami trabalhava freneticamente na versão de PlayStation, outro time tentava portar o jogo para o Sega Saturn.
O problema? O console da Sega não lidava bem com gráficos pré-renderizados, e a versão final ficou inferior à do PS1.
Ainda assim, essa versão trouxe conteúdos exclusivos, como um chefe Tyrant dourado e um modo de batalha extra.
Com limitações técnicas, decisões inesperadas e constantes mudanças no projeto, Resident Evil quase foi um jogo completamente diferente. Mas, ironicamente, foi justamente esse desenvolvimento caótico que moldou um dos maiores clássicos do terror.
O Desafio da Inteligência Artificial e as Engrenagens do Medo
Outro grande obstáculo era a IA (inteligência artificial). Nos anos 90, a maioria dos jogos usava inimigos pré-programados para seguir padrões simples.
Mas Resident Evil precisava de algo diferente. Os zumbis não podiam simplesmente correr atrás do jogador como os inimigos de Doom – isso destruiria a tensão.
Então, a solução foi criar um comportamento errático e imprevisível. Eles cambaleavam de formas diferentes, às vezes tropeçando, às vezes parando e encarando o jogador, criando momentos de incerteza.
Mas havia um problema, já que o PlayStation não conseguia carregar muitos inimigos ao mesmo tempo.
Mesmo que os modelos tivessem uma quantidade de polígonos extremamente baixa, a memória do console era limitada, e renderizar múltiplos zumbis em tela era um desafio técnico considerável.
Para contornar isso, a equipe implementou um sistema que limitava o número de inimigos ativos em cada área.
Isso não só ajudava no desempenho, mas também fazia com que os encontros com criaturas fossem mais impactantes.
Criando a Sensação de Sobrevivência
Mikami sabia que o terror verdadeiro vinha da vulnerabilidade. Não adiantava criar um mundo assustador se o jogador se sentisse um super-herói.
Por isso, ele adotou decisões de design que reforçavam a sensação de sobrevivência extrema.
Inventário Limitado: Inspirado nos sistemas de gerenciamento de recursos de jogos como Alone in the Dark, Mikami implementou um inventário pequeno, forçando o jogador a escolher cuidadosamente o que levar para o rolê.
Você carregaria mais munição ou um espaço extra para ervas de cura? Perceba que esse tipo de dilema simples aumenta a tensão a cada sala explorada.
Sistema de Salvamento: Ao invés de um sistema automático de check points, Resident Evil introduziu as icônicas máquinas de escrever.
Para salvar o progresso, era necessário encontrar fitas de tinta. Isso adicionava um elemento estratégico.
Você realmente queria gastar um recurso valioso para salvar um progresso pequeno agora ou correria o risco de avançar um pouco mais?
Munição Escassa: Balas não eram abundantes como nos jogos de tiro tradicionais. O jogador precisava decidir entre enfrentar os inimigos ou simplesmente fugir, criando momentos de desespero.
Esses sistemas combinados fizeram com que Resident Evil fosse mais do que apenas um jogo de terror – ele era uma simulação de sobrevivência em um ambiente hostil e realista.
Os filmes e jogos costumam, em sua maioria, retratar munição como algo abundante. Mas, na vida real, se você acha pouco ter uma arma de fogo com seis balas e precisar usar apenas uma… já era. Você está F#d1D0.
O Horror Além dos Gráficos: Som e Atmosfera
Mikami sabia que o terror não era só visual. Ele precisava de um design de som que amplificasse a sensação de solidão e paranoia.
E é aqui que entra Masami Ueda, compositor que ajudou a criar a trilha sonora fantástica do jogo.
A música dramática variava entre momentos de silêncio absoluto e trilhas tensas que ecoavam como se a própria mansão estivesse sussurrando.
Os efeitos sonoros também foram essenciais: cada passo no chão de madeira rangia de maneira distinta, cada passo do jogador ecoava nos corredores vazios e cada gemido de zumbi era projetado para arrepiar a espinha.
E, claro, há o lendário som das portas se abrindo e o suspense agoniante.
A animação de portas se abrindo foi criada como uma solução técnica para mascarar o carregamento dos cenários. Mas, acidentalmente, tornou-se um dos elementos mais icônicos do jogo.
Cada vez que o jogador abria uma porta, o suspense aumentava. O que estaria do outro lado? Uma sala segura? Um corredor vazio? Ou um cão zumbi prestes a saltar em sua direção?
O Voice Acting Infame de Resident Evil
Se há algo que os fãs mais antigos de Resident Evil lembram com um misto de carinho (e vergonha alheia), é o voice acting.
A dublagem em inglês do jogo foi, para dizer o mínimo, desastrosa. As falas eram entregues de maneira robótica, com pausas estranhas e entonações bizarras.
Frases como “You were almost a Jill Sandwich!” e “I hope this is not Chris’ blood” tornaram-se memes eternos na comunidade fã de Residente Evil.
Mas por que a dublagem foi tão ruim?
Simples: A Capcom, na época, não via necessidade de investir pesado em dublagem de jogos.
O elenco de voz era diferente do elenco do live action e também era composto por atores desconhecidos e, segundo relatos, as gravações foram feitas sem contexto sobre a história ou direção adequada.
O resultado foi uma atuação que parecia saída de um filme B de baixo orçamento – o que, ironicamente, combinava com a estética do jogo.
Curiosamente, essa dublagem ruim acabou contribuindo para o charme cult de Resident Evil.
Com o tempo, os diálogos toscos se tornaram parte da identidade do jogo, sendo lembrados com nostalgia pelos fãs.
Feito na Pressão e no Improviso
O desenvolvimento de Resident Evil foi um verdadeiro campo de batalha. Limitações técnicas, decisões improvisadas e uma equipe inexperiente criaram um jogo que, no papel, parecia fadado ao fracasso.
Mas a necessidade de contornar esses obstáculos gerou soluções inovadoras que ajudaram a definir o gênero survival horror.
Nada ali foi fácil. Mas, ironicamente, foram os problemas e as restrições que moldaram Resident Evil em algo único e uma das franquias mais lucrativas da história dos videogames.
Cada corredor apertado, cada câmera fixa, cada bala contada – tudo isso nasceu de dificuldades técnicas e orçamentárias, mas se transformou em mecânicas intencionais que fizeram do jogo um clássico.
E agora, com o jogo quase pronto para o lançamento, restava a pergunta: o público aceitaria essa nova experiência de terror?
A resposta viria em 1996. E ela mudaria a história dos videogames para sempre.
As Influências Culturais na Origem de Resident Evil
Se Resident Evil fosse uma criatura monstruosa, suas veias estariam cheias de referências culturais, pulsando com o sangue de clássicos do horror e da ficção científica.
O jogo não surgiu no vácuo. Ele foi destilado a partir de um coquetel de influências que vão desde o terror gótico do século XIX até o cinema trash dos anos 1980.
E, claro, no centro de tudo isso, há um nome que não pode ser ignorado: George A. Romero.
Mas a história fica ainda mais curiosa quando descobrimos que Resident Evil não se inspirou apenas nos filmes de zumbis.
De O Iluminado a Frankenstein, de Alone in the Dark a Sweet Home, a gênese do jogo é um labirinto de referências e homenagens – algumas óbvias, outras enterradas como segredos em uma mansão abandonada.
George A. Romero e o DNA dos Mortos-Vivos
Se houvesse um panteão de deuses do terror, George A. Romero seria um dos titãs.
Veja bem, seu filme de 1968, A Noite dos Mortos-Vivos, praticamente inventou o conceito moderno de zumbis: criaturas sem alma, impulsionadas por um instinto devorador e por uma ameaça latente que nunca desaparece completamente.
E foi exatamente esse tipo de horror que Shinji Mikami, embora não curtisse, queria replicar em Resident Evil.
Mikami assistiu e reassistiu A Noite dos Mortos-Vivos, estudando cada cena como um cirurgião inspeciona um corpo.
O que tornava os zumbis de Romero tão assustadores naquele tempo? Não era só a aparência grotesca ou a fome incessante – era a forma como eles se moviam, a sensação de desespero crescente, a incerteza sobre quando e onde o próximo ataque viria.
Mikami queria transpor isso para os videogames, e fez isso com maestria: os zumbis de Resident Evil não eram inimigos comuns, eram forças inevitáveis, símbolos da morte que o jogador jamais poderia exterminar completamente.
Mas Romero não foi apenas uma inspiração distante. Em 1998, ele chegou a ser convidado para dirigir um comercial de Resident Evil 2 no Japão, um clipe curto e estilizado que misturava live-action com efeitos práticos.
Mais do que isso, Romero foi cogitado para dirigir um filme baseado no jogo.
No entanto, sua visão para a adaptação era fiel demais ao material original, e a Capcom acabou recusando sua proposta.
O que veio depois? O filme de Resident Evil dirigido por Paul W.S. Anderson – uma versão muito mais livre e que dividiu os fãs.
O fato de Romero ter sido rejeitado como diretor do filme é, ironicamente, um reflexo do próprio ciclo do terror: o mestre que inspirou a obra foi deixado de lado quando a obra ganhou vida própria.
Do Gótico ao Corporativo: As Raízes Literárias do Horror
Os monstros de Resident Evil não surgiram apenas da telona – suas sombras se estendem até os clássicos literários do terror.
Se George Romero deu ao jogo seus zumbis, foi Mary Shelley, H.P. Lovecraft e Bram Stoker que ajudaram a moldar sua alma.
Mary Shelley e o terror da ciência proibida: Se Resident Evil tivesse um subtítulo filosófico, poderia muito bem ser “Frankenstein Corporativo”.
Assim como Victor Frankenstein brincava de deus ao criar sua monstruosa aberração, a Umbrella Corporation faz o mesmo ao desenvolver armas biológicas sem medir as consequências.
A mansão Spencer, lar de experimentos fracassados e criaturas deformadas, é praticamente um castelo gótico reimaginado para a era moderna.
H.P. Lovecraft e o horror do desconhecido: Lovecraft tinha uma regra simples: o medo verdadeiro vem daquilo que não compreendemos. Do Indescritível…
O mesmo princípio foi aplicado em Resident Evil. O jogo não despeja toda a sua história de uma vez – ele a espalha em pedaços, em documentos esquecidos, em pistas escondidas.
O jogador descobre aos poucos que há algo muito maior e mais aterrador nos bastidores, uma conspiração que se estende além dos mortos-vivos à sua frente.
Bram Stoker e o mal enclausurado: Se pararmos para refletir, a mansão Spencer pode ser vista como um castelo de Drácula reformulado.
Isolada do mundo, cheia de segredos e habitada por criaturas que deveriam estar mortas, ela é uma homenagem sutil à tradição gótica do horror.
É essa fusão entre o horror científico e o horror sobrenatural que dá a Resident Evil sua identidade única. Ele não é apenas sobre monstros – é sobre o medo de brincar com forças além do nosso controle.
O Cinema Além de Romero: Outras Influências Ocultas
Embora Romero seja a referência mais óbvia para nós, Resident Evil bebeu de muitas outras fontes cinematográficas. Algumas delas são sutis, outras são descaradas homenagens.
- O Iluminado (1980) – A ideia de uma mansão isolada onde a loucura e o perigo se espalham gradativamente tem ecos do clássico de Stanley Kubrick. Os corredores longos e vazios, a arquitetura quase labiríntica da mansão Spencer e a sensação de paranoia constante são pura influência de O Iluminado.
- Alien: O Oitavo Passageiro (1979) – A maneira como Resident Evil constrói sua tensão se assemelha muito ao horror claustrofóbico de Alien. No começo, o jogo não despeja inimigos sobre você – ele faz você esperar por eles, exatamente como Ridley Scott fez com o Xenomorfo. Além disso, a heroína Jill Valentine tem traços inspirados em Ellen Ripley, a icônica protagonista de Alien.
- Dia dos Mortos (1985) – Outro filme de Romero, Dia dos Mortos influenciou diretamente a forma como Resident Evil retrata instalações subterrâneas e experimentos militares saindo do controle.
Essas influências cinematográficas fazem de Resident Evil quase um filho espiritual dos melhores momentos do terror nos anos 70 e 80.
Ele não apenas absorveu esses elementos, mas os reinventou para o meio interativo, colocando o jogador no papel de protagonista do próprio pesadelo.
A Cultura Pop Engolida Pelos Zumbis
Resident Evil começou como um jogo inspirado pela cultura pop, mas ele rapidamente se tornou parte dela.
Após o lançamento, a franquia gerou não apenas continuações e remakes, mas também filmes, animações, série em live action, livros, quadrinhos e um verdadeiro império multimídia.
- O impacto nos videogames – Após Resident Evil, o gênero survival horror explodiu. Jogos como Silent Hill, Dino Crisis e Fatal Frame surgiram diretamente da trilha que Mikami abriu.
- O impacto no cinema – Ainda que o filme de 2002 tenha tomado liberdades, ele provou que existia mercado para adaptações de jogos de terror, influenciando até mesmo séries como The Walking Dead.
- O impacto nos memes e na internet – Frases como “Jill Sandwich” e “Chris’ Blood” entraram para o folclore dos videogames, perpetuadas por gerações de jogadores e criadores de conteúdo.
Resident Evil começou como um jogo inspirado por outras obras, mas hoje é um dos pilares que inspiram novos criadores de terror.
Como uma infecção viral que se espalha sem controle, sua influência continua crescendo, contaminando cada novo projeto que ousa explorar os limites nos jogos de terror.
O Lançamento: Da Incerteza ao Sucesso Global
O trabalho estava feito. Depois de anos de experimentação, desafios técnicos e uma mistura caótica de influências culturais, Resident Evil estava pronto para ser lançado.
Mas havia um problema: ninguém na Capcom sabia se o jogo realmente funcionaria.
O mercado de videogames dos anos 90 ainda era dominado por jogos de ação acelerados e plataformas coloridas. O conceito de um jogo lento, tenso e repleto de momentos de silêncio absoluto era um risco colossal.
A Capcom temia que Resident Evil fosse um fracasso comercial, um tiro no escuro que nunca encontraria seu alvo.
O survival horror não existia como um gênero consolidado. Era como atirar um cadáver em um tanque de ácido e torcer para que algo interessante emergisse dali.
Então, chegou o dia 22 de março de 1996. Resident Evil foi lançado no Japão.
Poucos imaginavam o que estava prestes a acontecer.
Um Jogo Que Se Sentia Vivo
Desde os primeiros minutos de gameplay, ficou claro que Resident Evil não era apenas mais um joguinho – era uma experiência psicológica profunda.
- O primeiro encontro com um zumbi, com a icônica cena da criatura virando lentamente a cabeça para encarar o jogador, tornou-se instantaneamente uma das imagens mais perturbadoras dos videogames.
- A tensão insuportável ao abrir cada porta, sem saber o que esperar do outro lado, fazia com que jogadores segurassem a respiração sem perceber.
- A trilha sonora – ou a falta dela em certos momentos – criava um ambiente sufocante, onde cada som ecoava na mente do jogador como um prenúncio de algo terrível prestes a acontecer.
O impacto foi meteórico. A mídia especializada percebeu que algo revolucionário estava diante de seus olhos. As revistas de games da época elogiavam o realismo (para os padrões da época), a jogabilidade inovadora e o nível de imersão nunca antes visto.
Mas ninguém estava preparado para o público.
Assim que o jogo chegou às lojas ocidentais, ele explodiu em popularidade. O boca a boca correu solto. Jogadores relatavam experiências traumáticas, momentos de puro pânico, decisões desesperadas para economizar munição ou escapar de emboscadas.
De repente, Resident Evil não era apenas um jogo – era um evento cultural.
A Polêmica Em Torno de Resident Evil
Com grande sucesso, vêm grandes polêmicas. Ou algo assim…
O jogo não apenas chocava os jogadores – chocava os pais, a imprensa e até mesmo políticos.
A violência gráfica e o tom sombrio de Resident Evil levantaram bandeiras vermelhas entre grupos conservadores. Nos EUA, programas de televisão debatiam se aquele jogo poderia “corromper a juventude” ou incitar comportamentos violentos.
Na versão japonesa, a Capcom já havia suavizado algumas cenas de violência extrema, mas na versão ocidental o sangue ainda jorrava livremente.
As aberturas live-action do jogo, que mostravam cenas de personagens sendo atacados, tiveram que ser editadas em várias regiões.
Mas nada disso impediu Resident Evil de dominar o mundo dos videogames.
Se a Capcom tinha dúvidas sobre o potencial comercial do jogo, elas desapareceram rapidamente.
- 2,75 milhões de cópias vendidas só no PlayStation 1 – um número impressionante para a quinta geração, dado o tamanho do mercado.
- Foi o jogo mais vendido da Capcom até então, superando até mesmo franquias estabelecidas como Street Fighter.
- O termo “survival horror” foi cunhado para descrever o jogo – e nasceu um novo gênero, influente até hoje.
Mas o verdadeiro impacto de Resident Evil não estava apenas nos números. Ele foi um dos jogos polêmicos da década de 1990 que mudaram a maneira como os videogames eram vistos até então: Eram brinquedos até então.
E também, pela primeira vez, um jogo de terror não era um nicho obscuro – era mainstream, um fenômeno cultural que transcendia as telas.
Críticas e Elogios a Resident Evil
Apesar do sucesso, Resident Evil não era um jogo perfeito. Algumas críticas surgiram logo após o lançamento:
A dublagem ridícula: Se você jogou a versão original, sabe do que estou falando. Os diálogos eram entregues de maneira mecânica e robótica, como se os atores tivessem lido o roteiro pela primeira vez segundos antes da gravação.
Os controles tanque: Muitos jogadores reclamaram que controlar os personagens era frustrante e que a movimentação parecia “dura”.
A câmera fixa: Enquanto ajudava a criar tensão, também resultava em alguns momentos frustrantes onde inimigos atacavam de ângulos que o jogador não conseguia enxergar.
Mas sabe o que é mais curioso? Esses “defeitos” ajudaram a tornar Resident Evil ainda mais icônico. Foi como tentar apagar o foco com gasolina, em ultima analise.
A dublagem e o live action de abertura terríveis viraram meme antes mesmo dos memes existirem. Os controles difíceis faziam parte da experiência, reforçando a sensação de desespero e vulnerabilidade. A câmera fixa criava pânico genuíno – o medo do que não se pode ver.
Esses elementos, que poderiam ser falhas fatais em qualquer outro jogo, acabaram fortalecendo Resident Evil.
O Legado Que Nunca Morre
O sucesso estrondoso garantiu não apenas uma continuação, mas o nascimento de uma das franquias mais bem-sucedidas da história dos videogames.
Em 1998, Resident Evil 2 elevou a fórmula a um novo patamar.
Resident Evil 3: Nemesis consolidou o terror de perseguição.
O que começou como um experimento arriscado se tornou um dos pilares da cultura gamer moderna.
Hoje, Resident Evil não é apenas uma série de jogos – é um ícone. Um nome que evoca memórias de corredores escuros, munição escassa e o som de um zumbi se arrastando para fora da sombra.
E pensar que tudo isso quase não aconteceu…
Se a Capcom tivesse jogado pelo seguro… Se Mikami tivesse recusado o projeto… Se o hardware do PlayStation não suportasse a visão da equipe…
Mas o destino quis que Resident Evil existisse. E o terror nunca mais foi o mesmo.
Obrigado por nos ler até aqui e esperamos que tenha gostado da nossa publicação. Duvidas ou sugestões aqui embaixo nos comentários. Até a próxima, pessoal!