Os jogos AAA perderam a capacidade de surpreender — mas ganharam a habilidade de vender a mesma experiência, uma geração após a outra.
Vivemos a geração em que se investe milhões para fazer tudo parecer igual — em 4K e 60fps. O Incrível Custo da Mesmice.
O trailer viraliza no YouTube…. Chuva de partículas. Violino distorcido. Uma protagonista moderninha, câmera colada no ombro, mundo aberto, crafting, stealth opcional e uma história “emocionalmente impactante”.
A internet surta…
O hype engata a quinta. E então vem o ciclo: atraso, marketing agressivo, pré-venda, embargo, lançamento… decepção.
Quantas vezes você já viveu esse loop?
Na última década, os grandes jogos AAA deixaram de ser experiências únicas para se tornarem produtos industriais revestidos de verniz artístico.
São jogos que custam fortunas, levam quase uma geração inteira pra ficarem prontos — e quando chegam, parecem variações de algo que você já jogou antes.
Eles são incríveis, tecnicamente deslumbrantes, e mesmo assim… todos têm o mesmo gosto de algo já mastigado.
Como chegamos aqui?
Por que jogos tão caros demoram tanto e ainda parecem tão parecidos?
O que mudou desde a era em que GTA, Assassin’s Creed e God of War entregavam múltiplos títulos numa única geração?
E por que hoje cada novo AAA parece mais um risco de desastre financeiro do que uma celebração da criatividade?
Já que entramos nesse assunto, vamos precisar abrir a caixa-preta da indústria. Ver os números. Olhar para os ciclos. E entender o paradoxo que virou regra: quanto mais dinheiro se coloca em um projeto, menos liberdade parece sobrar pra criar algo realmente novo.
A Era de Ouro dos Jogos AAA
Houve um tempo na história dos videogames em que grandes jogos não precisavam de uma década para nascer. Nem de trailers cinematográficos com orçamentos de Hollywood.
A indústria ainda estava longe da obsessão pelo fotorrealismo e da busca por mundos abertos do tamanho da Groenlândia.
E mesmo assim — ou talvez por causa disso — era uma era incrivelmente fértil para os jogos AAA.
Na geração do PS2 e até meados do PS3 e Xbox 360, franquias como God of War, Assassin’s Creed, Call of Duty, GTA e Uncharted conseguiam lançar múltiplos títulos em uma única geração.
Em apenas 5 anos God of War teve três jogos principais, além de spin-offs.
A Ubisoft colocava um Assassin’s Creed novo todo ano. Até mesmo GTA, hoje sinônimo de silêncio por 10 anos, lançou GTA III, Vice City e San Andreas em menos de cinco.
E o mais impressionante? Eles ainda eram jogos marcantes, ambiciosos e diversos entre si.
Os ciclos de desenvolvimento eram mais curtos. As equipes, menores. Os riscos, mais aceitáveis.
Não era preciso apostar todas as fichas em um único título por geração. Isso permitia mais espaço para tentativas, acertos e erros — e isso, por si só, criava espaço para inovação real.
Havia um equilíbrio mais saudável entre escopo, ambição e entrega.
Jogos eram grandes, sim — mas não eram monstros indomáveis que consumiam tempo, recursos e a sanidade de centenas de pessoas ao longo de sete ou oito anos.
Essa era de ouro não foi perfeita, mas nos ensinou algo importante: o AAA não precisa ser insustentável para ser memorável. E talvez, olhando para trás, dê pra entender melhor onde tudo começou a sair dos trilhos.
Como os Jogos Ficaram Tão Caros?
Hoje, desenvolver um jogo AAA é como construir um arranha-céu com as mãos tremendo.
Não basta que seja grande — ele precisa ser perfeito, hiperrealista, emocionalmente impactante, aberto, vivo, filmável e, de preferência, premiado.
O problema? Cada item dessa lista custa caro. Muito caro.
Com orçamentos que frequentemente ultrapassam os 200, 300 ou até 500 milhões de dólares, grandes produções passaram a competir não apenas com outros jogos, mas com o próprio cinema blockbuster.
Modelagens ultra detalhadas, captura de movimentos com dezenas de atores, trilhas orquestradas, ambientações que demandam anos de pesquisa e refinamento artístico, e claro: equipes com centenas — às vezes milhares — de desenvolvedores, espalhados em diferentes países, trabalhando em sincronia durante ciclos de 5 a 8 anos.
E o resultado disso tudo é um jogo com o peso de um investimento corporativo. E um medo enorme de errar.
Veja vem, quando se gasta tanto, a inovação vira risco. O que era para ser criação vira contenção. Repete-se o que funcionou, recicla-se o que vendeu…
Daí vêm os sistemas familiares: mapas abertos cheios de ícones, crafting obrigatório, progressão de personagem com árvore de habilidades, colecionáveis que só existem para preencher o vazio.
Death Stranding e Red Dead Redemption II foram monumentos técnicos, mas seus ciclos de desenvolvimento beiraram o insano. Cyberpunk 2077, mesmo com orçamento e equipe astronômicos, chegou ao mercado como um colapso.
O recém-anunciado GTA VI já está em produção há quase uma década. É o novo normal.
Repare que os AAAs modernos deixaram de ser um produto de excelência criativa — viraram uma operação de guerra. Uma que, cada vez mais, depende de acertos perfeitos… e não tolera o menor vacilo.
Ciclos de Desenvolvimento Que Consomem Gerações
Lembra quando dava pra esperar o próximo jogo da sua franquia favorita ainda na mesma geração? Pois é. Hoje, o tempo entre um grande lançamento e sua continuação parece funcionar em outro plano existencial — onde cada novo título demora tanto para acontecer que você termina uma faculdade, muda de cidade, adota um cachorro… e o jogo ainda está em pré-produção.
Você se lembra que The Elder Scrolls VI foi anunciado em 2018 com um teaser de 30 segundos?
Em 2024, seis anos depois, a Bethesda admite que o jogo ainda está nos estágios iniciais. (WTF?!)
GTA VI passou mais de uma década como lenda urbana antes de finalmente mostrar um trailer.
Metroid Prime 4 foi reiniciado do zero anos após ter sido revelado.
Beyond Good & Evil 2 virou piada existencial.
E no meio disso tudo, a gente ainda está jogando Skyrim e GTA V. Só que agora com iluminação melhor e em 4K.
É como se o mercado AAA tivesse sido tragado por um buraco negro de ambição.
A promessa de mundos mais complexos, narrativas cinematográficas e fidelidade gráfica extrema cobra um preço que se paga com tempo — e muito.
Anos e anos de desenvolvimento para entregar uma experiência que, muitas vezes, só repete fórmulas com uma camada nova de gráficos.
Enquanto isso, a pressão só cresce. Quanto mais tempo demora, mais expectativa se cria. Quanto maior a expectativa, mais medo de errar. E quanto mais medo… mais conservador o projeto vai ficando.
É um ciclo perverso, percebeu? Um paradoxo temporal onde a espera não garante inovação — só inchaço.
A Fórmula de Bolo dos Jogos AAA
Você inicia o jogo. Cutscene dramática. Protagonista com traumas, câmera sobre o ombro, mundo semiaberto.
1ª Missão: seguir alguém em silêncio.
2ª Missão: aprender a usar a roda de habilidades.
3ª Missão: pegar sucata para fabricar um item.
4ª Missão: liberar o mapa e… bom, você já conhece esse jogo, mesmo que nunca tenha jogado. Vai dizer que não??
A grande ironia da indústria AAA moderna é essa: quanto mais dinheiro se coloca, mais parecidos os jogos se tornam.
Existe hoje uma fórmula invisível — ou melhor, visível demais. Um pacote completo de convenções não ditadas por narrativa ou inovação, mas por segurança de investimento.
São jogos construídos para agradar a maior quantidade possível de pessoas, sem desafiar nenhuma delas de verdade.
A estrutura é quase sempre a mesma:
- Mapas vastos, porém inchados
- Progressão baseada em loot e grind
- Narrativas emocionalmente intensas, mas superficialmente seguras
- Árvore de habilidades para TUDO, até pra abrir uma porta mais rápido
- Missões secundárias que repetem o mesmo modelo: siga, colete, elimine, entregue
Far Cry, Horizon, Assassin’s Creed, Watch Dogs, Ghost Recon, Days Gone, Hogwarts Legacy — muitas dessas franquias, mesmo de estúdios diferentes, passam a sensação de terem sido feitas pelo mesmo game designer viciado em copiar a si mesmo.
E o mais curioso? Essas fórmulas funcionam. Vendem bem. São defendidas por parte do público.
O problema não é que elas existam — é que elas dominaram tudo!
A padronização não é só visual ou mecânica. Ela é filosófica.
Os jogos AAA deixaram de arriscar, porque errar custa caro. Então o que resta é um mar de produtos impecavelmente polidos — e profundamente previsíveis.
Tirando os gráficos e direção de arte, o novo jogo de 500 milhões de dólares parece o anterior. Só que agora com uma capa diferente, uma dor emocional nova e mais recursos de Ray Trace por centímetro.
O Impacto na Indústria e no Jogador
Não é só o jogo que sai flopado no fim de um ciclo AAA. É todo mundo envolvido.
Do lado da indústria, o que antes era paixão virou sobrecarga. Estúdios gigantes enfrentam anos de crunch, metas inalcançáveis, layoffs em massa e expectativas irreais — tudo para entregar um produto que, muitas vezes, já nasce em dívida emocional com o público.
Quantos projetos já foram engolidos pelo próprio escopo?
Anthem, Forspoken, Redfall, The Callisto Protocol, Hogwarts Legacy. Cada um deles chegou ao mercado com um pacote visualmente impecável, trailers que prometiam mundos e, no fim, vazio.
Vazio técnico, criativo e emocional. Jogos que pareciam feitos com todo o dinheiro do mundo — e nenhuma alma dentro.
Do lado do jogador, o reflexo vem em forma de fadiga silenciosa.
Sabe aquela sensação de já ter feito isso antes? De estar jogando por hábito, não por prazer.
De terminar o jogo e esquecer dele em uma semana. De não conseguir mais se empolgar com um novo trailer, porque já dá pra prever o HUD, o tipo de progressão, a curva de dificuldade e até o final.
O hype ainda existe — mas é automático. O engajamento ainda acontece — mas é meio que protocolar.
A consequência é um mercado em que cada novo jogo precisa ser um espetáculo para justificar sua existência. E quando tudo é espetáculo… nada mais impressiona.
Existe Saída? Talvez…
Talvez um futuro além do clichê cinemático. A boa notícia é que sim — há saídas. E elas já estão entre nós.
Elas só não costumam vir com orçamentos de 300 milhões ou marketing no intervalo do Super Bowl.
Jogos como Hi-Fi Rush, Hades, Stray, Alan Wake 2 e até Baldur’s Gate 3 provaram que dá para entregar experiências marcantes, originais e impactantes sem seguir a cartilha visual e narrativa do “jogo de prestígio” moderno.
Alguns deles são mais modestos em escopo. Outros são ousados justamente por abraçar o que os diferencia.
Hi-Fi Rush apareceu de surpresa, com visual cartunesco e combate rítmico, e encantou pela autenticidade. Hades transformou repetição em narrativa viva. Baldur’s Gate 3 mostrou que profundidade, liberdade e escolhas ainda podem existir em uma superprodução — sem abrir mão da identidade autoral.
E o que esses jogos têm em comum?
Eles não têm medo de ser estranhos. Não têm medo de desagradar parte do público. E não tentam imitar o que já existe — tentam expandir.

Enquanto os AAA continuam investindo em fórmulas exaustas, a cena independente e os estúdios médios estão tomando riscos — e colhendo recompensas reais, em engajamento e longevidade.
A saída talvez não seja abandonar os AAA — mas repensar o que eles precisam ser.
O problema não é o dinheiro. É o medo de usá-lo de forma criativa. O jogo não precisa custar menos — precisa arriscar mais.
E talvez, só talvez, o futuro esteja justamente em recuperar algo que a indústria deixou para trás: a vontade de surpreender.
Jogos AAA Não Precisam Ser S/A
Os Jogos AAA não precisam agir como projetos de uma empresa de capital aberto — preso a fórmulas seguras, medo de arriscar e decisões baseadas em planilhas.
Ele só precisa parar de ter medo de ser videogame de novo.
Os jogos AAA se tornaram negócios tão grandes, tão engessados e tão dependentes do sucesso absoluto, que parecem mais produtos de uma S/A do que obras de um estúdio criativo.
E o problema não é o tamanho do orçamento. É o que se faz com ele.
Quando tudo vira franquia, quando toda narrativa precisa caber num trailer épico e todo mundo aberto precisa justificar seu mapa inflado com horas de conteúdo genérico… o que sobra? Brilho sem identidade. Escopo sem alma. Hype sem herança.
Mas ainda há espaço pra virar o jogo. Nós, como jogadores, estamos cada vez mais atentos.
O mercado está mais fragmentado. Os exemplos de jogos criativos que quebraram o molde estão aí, provando que é possível fazer diferente — e ser relevante por isso.
A indústria de games sempre foi movida por ciclos. Mas ciclos, como já aprendemos, podem ser quebrados.
Os Jogos AAA não precisam morrer. Eles só precisam parar de ter medo de serem videogames de novo.
Obrigado por nos ler até aqui! Qualquer dúvida ou sugestão, nos deixe um comentário. Até a próxima!