Montagem com imagens de diversos anti-heróis famosos.
Montagem com imagens de diversos anti-heróis famosos.

Se você gosta de filmes ou mesmo séries de televisão, é muito provável que você já tenha ouvido falar do termo “anti-herói”. Especialmente, nesse momento em que esse conceito tem sido bastante utilizado para “reconstruir” personagens que antes eram, muitas vezes, considerados vilões. Nesse caso, o uso da figura do anti-herói, funciona quase como um retcon, ou seja, uma tentativa de estabelecer uma narrativa diferente daquela inicialmente estabelecida para um personagem.

Mas se você ainda não está totalmente familiarizado com o conceito de anti-herói ou, até mesmo, quer aprender mais sobre ele, não se preocupe, estamos aqui para te ajudar. Nesse texto, iremos explicar em detalhes o que é um anti-herói, mostrar seu uso ao longo da história e também em mídias atuais, como cinema e televisão e explicar também porque essa figura está tão em voga atualmente e porque seu uso tem sido tão comum. Então, sem mais delongas, vamos lá.

O que é um anti-herói

O anti-herói é um personagem de uma narrativa, que não possui qualidades e atributos normalmente considerados inerentes ao heroísmo, como idealismo, coragem ou moralidade, por exemplo. O anti-herói pode até mesmo fazer o que a audiência considera moralmente e eticamente correto, mas ele faz por seus próprio motivos e não pelos motivos considerados “corretos”. Assim, o anti-herói, geralmente, é forçado a agir de forma correta. Fazendo o certo não porque ele quer, mas porque ele não tem muita escolha.

Geralmente, o anti-herói será sempre um dos personagens principais da narrativa. Comumente ocupando os papéis ou de protagonista ou de antagonista dentro da narrativa. Para muitos teóricos, inclusive, o anti-herói pode ser considerado inerentemente um herói ou um vilão, dependendo do ponto de vista de uma narrativa. Exemplo disso, é o uso que se tem feito recentemente da figura do anti-herói no cinema. Com personagens como Malévola ou mesmo Venom. Ambos, considerados vilões nas versões originais de suas histórias e que foram transformados em anti-heróis em filmes recentes.

Joel Miller (Pedro Pascal), anti-herói de sucesso nos videogames e na televisão. Distribuição: HBO.
Joel Miller (Pedro Pascal), anti-herói de sucesso nos videogames e na televisão. Distribuição: HBO.

Para o famoso dramaturgo francês Jean-Baptiste Racine, a figura do anti-herói clássico deve possuir três características básicas. A primeira delas é o fato de ele estar sempre, desde o início da narrativa, destinado a falhar. Isso se dá, devido as características do anti-herói que muitas vezes, não possui as mesmas qualidades ou talentos do herói. Ou seja, ele é um “perdedor” clássico. A segunda característica da figura do anti-herói clássico é que a culpa dessa falha é sempre dos outros, nunca dele. Assim, ele é levado aquilo por circunstâncias alheias a sua vontade. Muitas vezes, agindo contra tudo e contra todos, o anti-herói acaba sendo sabotado por todo o mundo a seu redor e isso leva ao erro e a falha.

A terceira e última característica do anti-herói clássico segundo Jean-Baptiste Racine é oferecer uma crítica dos conceitos morais e éticos e também da própria realidade. Justamente uma das principais explicações para a popularidade atual dessa figura. Dessa forma, o anti-herói acaba por mostrar a realidade como ela realmente é, ao invés de mostrar um “mundo cor-de-rosa”, como acontece em muitas narrativas protagonizadas por um herói clássico.

Isso ocorre, porque o anti-herói é naturalmente e inerentemente falho. Fazendo dele um personagem, muitas vezes, extremamente humano, o que na maioria dos casos, gera uma identificação imediata com o público que também é humano e falho. Enquanto o herói é um ideal quase que intocável, uma utopia, o anti-herói é, na maioria das vezes, considerado “gente como a gente”. Um personagem que poderia ser qualquer um, seu amigo, seu vizinho ou mesmo você próprio.

Agora que você já tem uma ideia do que é um anti-herói, vamos nos aprofundar em temas como a sua diferença em relação ao herói, seu uso ao longo da história e também como surgiu a figura do anti-herói. Além disso, utilizaremos exemplos, para ajudar na sua compreensão. Então, sem mais demoras, vamos lá.

Diferenças entre o herói e o anti-herói

Provavelmente, a grande diferença entre o herói e o anti-herói seja o altruísmo. O herói é inerentemente altruísta. Ele faz tudo o que faz sempre pensando nos outros, no coletivo. Para ele, o coletivo vem antes e seus interesses pessoais depois. Ele é movido a agir com heroísmo, simplesmente porque isso é “o certo a se fazer”. O herói sacrifica tudo em prol do próximo, até mesmo, eventualmente, a sua vida.

Por vezes, é comum vermos heróis que deixam de lado toda a sua vida pessoal, seus interesses, sua família e até mesmo aqueles que ele mais ama, para poder fazer o que tem que ser feito. Simplesmente, por um idealismo e um senso de justiça. Porque se ele tem o poder para agir, ele não pode simplesmente ficar parado e deixar que o “mal vença”. Ele tem que agir, arriscando constantemente sua própria vida.

Já o anti-herói não é altruísta. Ele é, na verdade, egoísta. O anti-herói pensa primeiro em si próprio. O coletivo e os outros vêm em segundo plano. Ele só realiza atos de heroísmo quando é forçado a fazê-lo, por falta de escolha ou mesmo por interesses próprios. Enquanto o herói não ganha nada com seus atos, muitas vezes nem sequer um “obrigado” e arrisca, inclusive, perder tudo, o anti-herói sempre age em benefício próprio, sempre esperando ganhar algo. Nem que seja, salvar a própria vida.

Batman e Superman. Reprodução Revista Galileu.
Batman e Superman. Talvez a comparação mais perfeita entre herói e anti-herói. Reprodução Revista Galileu.

Um exemplo, talvez, clássico dessa diferença vem dos quadrinhos. De dois dos mais famosos super-heróis da história dos quadrinhos. O Superman, criado em 1938 por Jerry Siegel e Joe Shuster, é um típico herói clássico. Agindo sempre em função do bem público, ele é guiado simplesmente por seu desejo de ajudar o próximo e seu forte idealismo, incutido nele, principalmente, por seus pais terráqueos, Martha e Jonathan Kent. Ele é uma figura quase que infalível, messiânica, um ideal utópico a ser seguido pelas “pessoas comuns”.

Já seu “rival” (rival pois foi criado para competir com ele), Batman, criado em 1939 por Bob Kane e Bill Finger, é talvez o anti-herói mais clássico dos quadrinhos, principalmente, a partir de sua renovação ocorrida nos anos 1970 e 1980. Batman é um ser humano como nós. Não tem nenhum poder especial, além de ser incrivelmente rico. Ele não age de forma altruísta. Combate o crime e os vilões para, de alguma forma, se vingar do violento assassinato dos pais, ocorrido quando ele ainda era uma criança.

Batman age sempre obcecado por esse desejo de vingança. Quer limpar as sociedade dos loucos e criminosos que causaram a morte de seus país. Quer impedir que outras crianças tenham que passar pelo que ele passou. Por isso, Batman diferentemente de Superman, é impiedoso, violento, por vezes, até mesmo inconsequente. Porque sua “moral” é torta e sua interpretação do que é certo e do é errado difere muito da interpretação de outros super-heróis, como o próprio Superman.

História do uso do termo e da figura do anti-herói

Apesar de estar bastante em voga nos últimos anos, a figura do anti-herói é quase tão antiga quanto a própria literatura. Só para se ter uma ideia, um dos primeiros personagens a ser considerado um anti-herói é Térsites, um soldado grego que supostamente participou da mitológica Guerra de Troia e que aparece descrito em detalhes no clássico poema, Ilíada, de Homero. Ou seja, estamos falando de uma obra escrita no século VIII antes de Cristo, há quase três mil anos atrás.

Já o uso do termo “anti-herói”, até onde se sabe, apareceu pela primeira vez em 1714, ou seja, há mais de 300 anos atrás. Ainda no século XVIII, a figura do anti-herói foi bastante utilizada em diversos livros clássicos de autores consagrados, como “O Sobrinho de Rameau”, do escritor e filósofo francês Denis Diderot. Além de ter sido amplamente utilizada em seus trabalhos pelo poeta inglês Lord Byron, ele próprio uma figura controversa que poderia ser considerado quase que um anti-herói da vida real.

Retrato de Fedor Dostoyevsky (1872), o escritor utilizava bastante os anti-heróis em suas obras. Pintura de Vasily Perov (1833–1882) .
Retrato de Fedor Dostoyevsky (1872), o escritor utilizava bastante os anti-heróis em suas obras. Pintura de Vasily Perov (1833–1882) .

No século XIX, com a emergência do Romantismo, a figura do anti-herói foi bastante utilizada por autores como forma de criticar a realidade e a sociedade. Nessa época, era comum que os anti-heróis não tivessem sequer nome e funcionassem como uma espécie de contrabalanço ou contraste ao herói clássico. É importante lembrar o contexto histórico dessa época na Europa. Com a emergência da Revolução Industrial no século XVIII, o mundo agora era mais urbano e menos “feudal”.

Assim, a figura do herói mudou bastante. Nessa época também surge o iluminismo. Dessa forma, os autores passam a se interessar mais pelo herói urbano e “moderno” e menos pelo herói aristocrático e feudal. Igualmente, a literatura deixa de ser menos épica e passa a ser mais realista e irônica. Por isso, o herói perfeito e intocável perde espaço, dando lugar a um anti-herói muito mais humano e falho, que estava mais próximo das pessoas comuns da época.

Um exemplo de anti-herói bastante conhecido dessa época, é o personagem principal da novela Notas do Subterrâneo, escrita pelo russo Fyodor Dostoevsky e publicada em 1864. A história contada em primeira pessoa por um narrador anônimo é um ataque frontal a filosofia da época e também ao determinismo, ideologia que estava em alta naquele momento. O narrador é uma pessoa de personalidade difícil e humor ácido, que discorda fortemente de quase tudo na sociedade da época.

No século XIX, a figura do anti-herói ganhou ainda mais proeminência com a popularização do existencialismo, que procurava explorar a questão da própria existência humana. Nesse contexto, os autores dessa época procuravam criar protagonistas muito mais humanos para suas obras. Era comum que esses protagonistas fossem falhos, indecisos, alienados, solitários e fracassados e que suas vidas fossem monótonas e comuns. Assim, não havia espaço para o herói clássico perfeito, mas havia muito espaço para o anti-herói.

Imagem de Franz Kafka, o escritor foi um dos que mais utilizou a figura do anti-herói no início do século XX.
Imagem de Franz Kafka, o escritor foi um dos que mais utilizou a figura do anti-herói no início do século XX.

Naquele momento, um dos autores que mais exploraram a figura do anti-herói foi o escritor checo Franz Kafka. Isso porque, seus livros possuíam forte carga autobiográfica e Kafta era, ele próprio, uma figura falha, indecisa, solitária, um clássico perdedor, se é que podemos dizer assim. Portanto, os protagonistas de seus livros nunca eram perfeitos ou vencedores. Sua obra mais famosa, “A Metamorfose”, é protagonizada por uma clássica figura kafkiana, cheio de problemas e falhas. Outros grandes autores, como Jean-Paul Sartre e Albert Camus, também exploraram o anti-herói em seus livros.

No meio do século XX, com o fortalecimento do movimento contracultural, o anti-herói surge mais uma vez como um dispositivo utilizado pelos autores para criticar a sociedade e os costumes da época. O anti-herói literário dessa época é, geralmente, uma figura questionadora, socialmente alienada, muitas vezes desesperançosa e sem rumo. É nessa época também, que a figura do anti-herói, começa a aparecer com mais força no cinema, na televisão e, até mesmo, em outras mídias, como os quadrinhos.

A figura do anti-herói na televisão

Agora que falamos bastante do anti-herói na literatura, falaremos dessa figura na televisão e no cinema. Dedicaremos o espaço dessa seção para falar sobre a presença desse tipo de personagem em produções televisivas. Na televisão, desde o seu início, sempre existiram personagens que poderiam ser considerados anti-heróis. No entanto, por muitas décadas, eles não foram proeminentes. Até porque, as produções televisivas foram por muitas décadas vistas apenas como entretenimento e não como uma forma de arte.

Até por isso, muitas produções do início da televisão careciam de enredos mais complexos e de personagens mais profundos. Não que eles não existiam, mas eram a exceção e não a regra. Entre os personagens listados como os primeiros anti-heróis de destaque na televisão norte-americana estão, o Paladino, protagonista da série de faroeste Paladino do Oeste (1957-1963) e Archie Bunker das sitcons Tudo em Família (1971-1979) e Archie Bunker’s Place (1979-1983).

Paladino, interpretado por Richard Boone, era um pistoleiro de aluguel que, a cada episódio, era contratado por um cliente diferente para “resolver seus problemas”. O personagem também ajudava gratuitamente as pessoas que não podiam pagar e levava uma vida de luxo em São Francisco, nos Estados Unidos, se passando por um homem de negócios de sucesso. Já Archie Bunker, era um veterano da Segunda Guerra Mundial e trabalhador braçal que era o chefe da família Bunker, que por sua vez, era o centro, tanto de Tudo em Família (1971-1979) quanto de Archie Bunker’s Place (1979-1983).

Tony Soprano, protagonista da série Família Soprano. Distribuição: HBO.
Tony Soprano, protagonista da série Família Soprano. O personagem popularizou a figura do anti-herói em produções televisivas. Distribuição: HBO.

Archie era um homem antiquado que tinha ideias e um linguajar que, naquela época, eram considerados ultrapassados. Muitas das piadas da série se concentravam justamente nas confusões que ele se metia por causa disso e também de seus preconceitos. Somava-se a isso, sua personalidade difícil, o que fazia com que o personagem fosse considerado polêmico. Apesar disso, ele foi bastante popular e é, até hoje, considerado um dos melhores personagens da história da televisão norte-americana.

Se durante os primeiros 50 ou 60 anos de existência, a televisão não deu tanta proeminência assim para a figura do anti-herói, nos últimos 30 anos, esse tipo de personagem tem praticamente dominado a maioria das produções televisivas do mundo todo. A ponto de, inclusive, existirem questionamentos sobre um suposto exagero. Se você observar as produções de maior sucesso de crítica e público na atualidade, quase todas terão a presença de um anti-herói. E mais, se você listar os personagens mais lembrados pelo público desde o final dos anos anos 1990, haverá clara predominância de anti-heróis.

Mas porque isso tem ocorrido ultimamente? Principalmente, porque desde a popularização da televisão paga nos Estados Unidos a partir dos anos 1990, as produções televisivas passaram a ser levadas mais a sério, o que aumentou bastante a sua qualidade, até o ponto de serem, atualmente, comparadas ao cinema, em termos artísticos. Prova disso, é que nos dias atuais, nem sequer existe mais aquela velha distinção entre “atores de televisão” e “atores de cinema”, que existia até pouco tempo atrás.

Antes os atores de sucesso no cinema, dificilmente aceitavam fazer televisão e só faziam quando estavam “em decadência” ou no fim de suas carreiras. Já o sonho de quase todo ator de televisão era se tornar uma estrela de cinema. Hoje em dia, atores e atrizes atuam em produções cinematográficas e televisivas como se as duas coisas fossem iguais. Inclusive, existe uma junção entre os meios. Basta ver que diversas franquias de sucesso no cinema, como Stars Wars ou o Universo Cinematográfico Marvel (MCU), acabam por se estender também (e com muito sucesso) para a televisão.

Um dos grandes precursores na criação de produções de alta qualidade na televisão norte-americana foi a Home Box Office (popularmente conhecida pela sigla “HBO”), que também foi responsável por popularizar o primeiro grande anti-herói de sucesso dos anos 1990 e 2000 e que também fez com que esse tipo de personagem se tornasse predominante na televisão dos Estados Unidos nos últimos 30 anos. Claro que estamos falando do mafioso Tony Soprano (James Gandolfini), protagonista da consagrada série Família Soprano (1999-2007).

Walter White (Bryan Cranston) da série Breaking Bad, um dos anti-heróis mais populares da história da televisão mundial. Distribuição: AMC.
Walter White (Bryan Cranston) da série Breaking Bad, um dos anti-heróis mais populares da história da televisão mundial. Distribuição: AMC.

Depois que Família Soprano fez um sucesso estrondoso tanto de crítica quanto de público, a figura do anti-herói começou a ganhar cada vez mais proeminência. Seguiram-se assim diversos outros anti-heróis que marcaram a televisão mundial nos anos 2000 e 2010, como Jack Bauer, Frank Underwood, Gregory House, Don Draper, Jax Teller, Dexter Morgan e, claro, Walter White. Todas as produções protagonizadas por esses personagens foram imensos sucesso de público e crítica, o que fez com que o anti-herói se tornasse predominante e, de alguma forma, “matasse” o herói clássico.

O sucesso da maioria desses personagens está na complexidade e idiossincrasia de suas personalidades, uma característica muito forte de todos os anti-heróis, e também no enredo das produções que eles protagonizam, que não apenas gera interesse no espectador, mas também permite que esses personagens tenham ainda mais espaço para brilhar e se destacar em meio a multidão.

Só para se ter uma ideia, na lista citada acima, temos um agente federal que faz tudo para prevenir ataques terroristas nos Estados Unidos, mesmo que isso envolva o uso de métodos “controversos”, como tortura, assassinato e outros atos ilegais. Um médico misantropo, cínico e narcisista, mas que é tão genial que é capaz de diagnosticar e curar pacientes de uma forma que ninguém mais consegue. E um químico genial (que é obrigado a se tornar professor de química), que devido a necessidade financeira acaba se tornando fabricante e traficante de drogas.

Só por uma descrição breve desses personagens, já se percebe o potencial que eles têm, não apenas para chamar atenção do público, mas também para a construção, em volta deles, de narrativas capazes de originalidade e qualidade superior a maioria das produções televisivas. Por tudo isso, fica fácil de entender porque o anti-herói se tornou dominante no cenário televisivo atual, em um momento em que o público cada vez mais parece se interessar por histórias complexas e personagens com profundidade.

A figura do anti-herói no cinema

No cinema, como dito acima, a figura do anti-herói sempre foi bastante presente desde os primórdios da sétima arte. Isso ocorreu por diversos motivos. Primeiro que o cinema, como também já dissemos, sempre deu mais espaço para a construção de histórias mais sérias e personagens mais complexos. Diferentemente da televisão que, durante muito tempo, foi relegada a um papel de “apenas” entretenimento.

Também porque o anti-herói é uma forma de reconstruir e retrabalhar personagens e, assim, aproveitá-los em diversos filmes diferentes. O cinema comercial está sempre em busca de “reciclar” personagens e histórias, já que eles são vistos como “ativos” que devem render dividendos aos estúdios que detêm seus direitos intelectuais. Por isso, recentemente, Hollywood tem transformado muitos personagens que antes eram considerados vilões em anti-heróis, afim de reutilizá-lo e, claro, lucrar com eles.

"Little Caesar" (Edward G. Robinson), de Alma no Lodo (1931). Distribuição: Warner Bros. Pictures
“Little Caesar” (Edward G. Robinson), de Alma no Lodo (1931), um dos primeiros anti-heróis a cair no gosto popular. Distribuição: Warner Bros. Pictures

Devido a enorme quantidade de anti-heróis que tivemos no cinema desde os anos 1910 e 1920, quando o cinema começou a realmente se desenvolver como uma forma de arte e também ganhou viabilidade comercial, é praticamente impossível listá-los todos. Contudo, afim de ajudar na compreensão desse texto, mencionaremos nessa seção diversos exemplos de anti-heróis de grande destaque na história do cinema.

Ainda nos anos 1920, com o sucesso dos filmes de aventura, já vemos personagens que possuem características de anti-heróis, como alguns dos personagens interpretados por Douglas Fairbanks em alguns de seus filmes de maior sucesso nessa época. Personagens que tinham uma “malandragem” inerente e que, muitas vezes, destoavam um pouco do padrão do herói certinho e correto da época, como em produções, como O Ladrão de Bagdad (1924) e O Pirata Negro (1926).

Dessa época, um dos maiores exemplos da presença de um anti-herói em um filme ocorre no terror O Fantasma da Ópera (1925), estrelado pelo genial Lou Chaney. O personagem, que devido a uma deformidade no rosto, vive escondido dos olhos públicos (e assombrando a todos) nos bastidores da Ópera de Paris, é incompreendido e comete atos reprováveis, mas tem boas intenções. Na produção, o personagem acaba causando uma morte na tentativa de fazer com que uma atriz, que ele ama, se torne uma estrela.

Já nos anos 1930, temos a ascensão dos filmes de gângsteres, o que faz com que diversas produções dessa época sejam protagonizadas por anti-heróis. Podemos citar como exemplos dessa época, os gângsteres Little Caesar (Edward G. Robinson), Tom Powers (James Cagney) e Tony Camonte (Paul Muni), que são os personagens principais de Alma no Lodo (1931), Inimigo Público (1931) e Scarface: A Vergonha de uma Nação (1932), respectivamente.

o "Homem Sem Nome" (Clint Eastwood), que aparece em três dos mais importantes filmes de Sérgio Leone.
o “Homem Sem Nome” (Clint Eastwood), que aparece em três dos mais importantes filmes de Sérgio Leone.

Ainda nos anos 1930, temos um dos maiores clássicos da história, o drama histórico …E o Vento Levou (1939), cujos dois personagens principais, Rhett Butler (Clark Gable) e Scarlett O’Hara (Vivien Leigh), podem ser, de alguma forma, considerados anti-heróis, já que carecem das qualidades e das motivações, normalmente, presentes nos heróis, como altruísmo e moral e ética ilibadas.

Nos anos 1940 e 1950, com o lançamento de filmes dramáticos complexos e com início da era de ouro do cinema western, diversas produções protagonizadas por anti-heróis se destacam. Dessa época, podemos destacar diversos personagens interpretados por Humphrey Bogart, que acabou se especializando em interpretar anti-heróis, como Rick Blaine de Casablanca (1941) e Fred C. Dobbs de O Tesouro de Sierra Madre (1948). É dos anos 1940 também, Cidadão Kane que tem como protagonista um dos maiores anti-heróis da história, o bilionário Charles Foster Kane.

Nessa época, até mesmo John Wayne, que se tornou famoso por interpretar heróis clássicos, interpreta alguns personagens que poderiam ser considerados anti-heróis, como no clássico Rastros de Ódio (1956). Outro icônico ator, James Dean, também fica famoso por interpretar anti-heróis. Nesse caso, jovens rebeldes e desiludidos com o mundo. Sua carreira dura muito pouco, apenas cinco anos, mas nos três filmes em que ele tem papel de destaque, Vidas Amargas (1955), Juventude Transviada (1955) e Assim Caminha a Humanidade (1956), seus personagens tem características evidentes de um anti-herói.

Já nos anos 1960, temos uma renovação do gênero western e a ascensão do chamado “spaghetti western” (ou “faroeste espaguete”), em que o anti-herói tem um papel muito importante. Dessa época, se destacam personagens, como o “Homem sem Nome”, interpretado por Clint Eastwood, em três filmes clássicos dirigidos por Sergio Leone: Por um Punhado de Dólares (1964), Por uns Dólares a Mais (1965) e Três Homens em Conflito (1966).

Se destaca também o pistoleiro Django, interpretado por Franco Nero em dois filmes, mas que foi utilizado, muitas vezes sem autorização, em incontáveis outras produções dos anos 1970 e 1980. Também dessa época, temos os dois protagonistas do western Butch Cassidy (1969), Butch Cassidy (Paul Newman) e “Sundance Kid” (Robert Redford), que possuem características evidentes de anti-heróis.

Ainda falando de Clint Eastwood, ele acabaria por interpretar anti-heróis por praticamente toda a sua carreira. Nos anos 1970 e 1980, ele interpretaria o policial Dirty Harry em cinco filmes e acabaria influenciando todo o gênero de filme policial e criando o modelo do policial politicamente incorreto que faz tudo para combater o crime, mesmo que para isso ele próprio tenha que quebrar a lei e fazer coisas que podem não ser bem vistas pelo público. Esse tipo de personagem apareceria com frequência no cinema e na televisão até os dias atuais.

Michael Corleone (Al Pacino), protagonista da trilogia O Poderoso Chefão e um dos anti-heróis mais emblemáticos da história do cinema mundial. Distribuição: Paramount Pictures.
Michael Corleone (Al Pacino), protagonista da trilogia O Poderoso Chefão e um dos anti-heróis mais emblemáticos da história do cinema mundial. Distribuição: Paramount Pictures.

É claro que nos anos 1970, não podemos deixar de citar O Poderoso Chefão (1972) que é protagonizado por um dos maiores anti-heróis da história do cinema, Michael Corleone (Al Pacino). Pacino, aliás, também interpretaria outros anti-heróis em filmes, como Um Dia de Cão (1975) e Scarface (1983). Ainda nos anos 1970, não podemos deixar de citar Travis Bickle (Robert De Niro) protagonista de Taxi Driver (1976) e Han Solo (Harrison Ford), um dos personagens principais de Guerra nas Estrelas.

Ford também interpretaria outro famoso anti-herói, o arqueologista Indiana Jones, que aparece em cinco filmes, todos tendo o ator como protagonista. Ele também interpretaria outro anti-herói, o caçador de recompensas Rick Deckard, em Blade Runner (1982). Já na década de 1980, temos Max Rockatansky (Mel Gibson) da franquia Mad Max, que, aliás, voltaria com força nos anos 2010, dessa vez interpretado por Tom Hardy, outro ator que adora interpretar anti-heróis.

Dos anos 1990 para cá, temos ainda inúmeros anti-heróis de destaque, já que esse tipo de personagem ganhou bastante força no cinema e também, como dito antes, na televisão. Para evitar nos estendermos ainda mais, destacaremos apenas alguns poucos. Nesse caso, não podemos deixar de fora o matador de aluguel Léon (Jean Reno), de O Profissional (1994), a Mulher Gato, de Batman – O Retorno (1992) e o ex-criminoso William Munny (Clint Eastwood), de Os Imperdoáveis (1992).

Léon (Jean Reno) e Mathilda (Natalie Portman) em cena de O Profissional (1994). Distribuição: Gaumont Buena Vista International.
Léon (Jean Reno) e Mathilda (Natalie Portman) em cena de O Profissional (1994). O matador de aluguel é um dos anti-heróis mais conhecidos do cinema dos anos 1990. Distribuição: Gaumont Buena Vista International.

Com toda certeza, diversos anti-heróis de destaque foram deixados de fora dessa lista, mas apenas com a amostra dos parágrafos anteriores, acreditamos que já esteja bastante claro o que é um anti-herói e que essa figura foi utilizada no cinema ao longo de toda a história da sétima arte. Agora, na próxima seção desse texto, explicaremos como e porque a figura do anti-herói é utilizada no cinema e na televisão.

Usos para a figura do anti-herói

Agora que já explicamos em detalhes e com exemplos, o que é um anti-herói, falaremos sobre os motivos que levam diretores, roteiristas, showrunners e estúdios a utilizarem esse tipo de personagem em produções televisivas e cinematográficas. Existem razões artísticas e comerciais que, muitas vezes, se misturam. Apontaremos as principais delas e também daremos exemplos de produções que fazem uso desse tipo de personagem pelo motivo apontado.

Reboot ou reuso de personagens

No cinema comercial, como já citamos brevemente acima, personagens são considerados “ativos financeiros” e, portanto, não devem ser desperdiçados, devendo sempre render dividendos para os detentores de seus direitos autorais. Isso é especialmente verdade em uma indústria do entretenimento extremamente desenvolvida, como a norte-americana. Dessa forma, estúdios, editoras, canais de televisão e outras empresas de mídia estão sempre tentando “rebootar” (renovar) e reusar os personagens sobre os quais elas detêm os direitos, afim de fazê-los, é claro, render dinheiro.

É por isso, por exemplo, que nos últimos anos se tem visto bastante o ressurgimento de personagens que eram secundários em algumas histórias, mas que acabam por se tornar protagonistas de séries de televisão e filmes. Esses personagens, em sua maioria, eram vilões na versão original da história, mas agora são “retrabalhados” para se tornarem anti-heróis e assim protagonizarem suas próprias produções cinematográficas e televisivas, sem que tenham que depender da presença do “mocinho” e protagonista da história original.

Cena de Venom (2018).
Cena de Venom (2018). Que faz parte do Universo Homem-Aranha da Sony (SSU). O personagem era originalmente um vilão.

Vamos a um exemplo muito claro disso, o Universo Homem-Aranha da Sony (SSU), franquia construída a partir de personagens coadjuvantes, a maioria “vilões”, do universo do Homem-Aranha. Desde o final dos anos 1990, a Sony Pictures Entertainment (que é dona da Columbia Pictures) possui os direitos sobre os personagens desse universo. Por isso, a empresa produziu e distribui cinco filmes estrelados pelo Homem-Aranha.

Contudo, com a Marvel Comics, dona original dos direitos sobre o super-herói, desenvolvendo sua própria franquia (o Universo Cinematográfico Marvel), em parceria com a Walt Disney Company, e a Sony Pictures Entertainment tendo dificuldades em fazer com que os últimos filmes do Homem-Aranha se tornassem sucessos comerciais, a empresa aceitou fazer um acordo para que o “cabeça de teia” aparecesse nos filmes do MCU.

Com isso, o uso que a Sony Pictures Entertainment poderia fazer do personagem em seus filmes ficou bastante limitado, sem que o Homem-Aranha pudesse aparecer nas produções da empresa. Contudo, os personagens coadjuvantes do universo do super-herói, principalmente os vilões, ainda podiam ser usados livremente pela Sony Pictures Entertainment. Mas como construir filmes (ou mesmo uma franquia) em torno de vilões, sem a presença física do super-herói protagonista original das histórias?

Simples. Basta transformar os vilões em anti-heróis. Dar motivação e profundidade a eles. Por que eles fazem o que fazem? Por que cometem atos que podem ser considerados vilanescos? Com isso, você consegue transformar vilões em protagonistas de um filme e construir um enredo em cima deles. Foi isso que a Sony Pictures Entertainment fez a partir de 2018, com Venom, filme protagonizado pelo personagem de mesmo nome e que é, historicamente, um dos principais arquirrivais do Homem-Aranha e também um dos principais vilões de seu universo.

Com o sucesso desse primeiro filme, a Sony Pictures Entertainment produziu mais três. Uma continuação de Venom, um filme protagonizado por Morbius (outro vilão do universo do Homem-Aranha) e outro pela Madame Teia. Ainda estão para estrear um terceiro filme protagonizado por Venom e também um outro protagonizado por Kraven – O Caçador. Dessa forma, o estúdio conseguiu construir um universo inteiro apenas transformando vilões em anti-heróis e, assim, fazendo com que o público desenvolvesse simpatia por personagens que antes eram odiados.

A mesma coisa fez a Walt Disney Company, com a personagem Malévola, vilã principal da animação clássica A Bela Adormecida (1959). O estúdio pegou um personagem que não tinha nenhuma condição de existir de forma independente e transformou-o em um anti-herói capaz de protagonizar não apenas um, mas dois filmes, que fizeram enorme sucesso comercial. Assim, a Walt Disney foi capaz de transformar um ativo de pouco valor, em um ativo valiosíssimo e que traz lucro para a empresa.

Personagens com profundidade e que se aproxima do público

Outras duas das principais razões para o uso da figura do anti-herói em filmes e produções televisivas são, tentar criar personagens que tenham mais profundidade e que também se aproximem mais do público. Atualmente, uma parte importante do público busca enredos e personagens bem construídos e que tenham, pelo menos, algum nível de complexidade e profundidade. Assim, na era do streaming, é difícil emplacar personagens que são muito superficiais.

Dessa forma, os anti-heróis se tornaram predominantes, atualmente, já que esse tipo de personagem tende a ser naturalmente mais complexo que os heróis clássicos, que muitas vezes tendem a ser perfeitos, quase um ideal a ser alcançado. O anti-herói, por outro lado, tende a ter mais defeitos, ser mais imprevisível e mais humano. Assim também, esse tipo de personagem tende a se aproximar mais do público.

Jack Bauer (Kiefer Sutherland), o agente secreto se tornou um dos mais populares anti-heróis da televisão no início dos anos 2000. Distribuição: Fox.
Jack Bauer (Kiefer Sutherland), o agente secreto se tornou um dos mais populares anti-heróis da televisão no início dos anos 2000. Distribuição: Fox.

Isso porque, o público tende a se enxergar mais em um personagem que é mais parecido com ele. Basta ver que, nos últimos anos, os super-heróis mais humanizados, como o Batman e o Homem-Aranha, se tornaram mais populares que super-heróis perfeitos, como o Superman. Nesse sentido, o uso da figura do anti-herói traz outra vantagem para diretores, roteiristas e estúdios, já que o público atual cada vez mais quer se sentir próximo dos personagens. Dessa forma, os anti-heróis tendem a ser mais populares entre os espectadores.

A imprevisibilidade do anti-herói também é outra qualidade desse tipo de personagem que acaba por, igualmente, ser uma vantagem para diretores, roteiristas e estúdios, já que dá a eles a capacidade de inserir o personagem em diversas situações diferentes sem criar estranhamento e ainda criando expectativa no público. Isso faz com que eles tenham mais liberdade para criar e mais margem de manobra do que teriam com um herói clássico.

É claro que para que o público se sinta ligado ao anti-herói, ele deve ter boas intenções e também ser meio que “obrigado” ou levado a fazer o que faz. Ou seja, suas más ações não podem ser inteiramente culpa sua. São as circunstâncias que o levam àquilo. Por exemplo, Walter White, protagonista de Breaking Bad, não começa a fabricar e vender metanfetamina porque quer. Ele o faz porque está com câncer em estágio avançado e quer garantir o futuro financeiro de sua família. Sendo um professor de escola, ele mal conhece pagar as contas. Antes disso, ele já havia sido enganado por seu sócio. Ou seja, é um personagem que é levado ao crime praticamente porque não tem escolha.

Jack Bauer, protagonista da série 24 Horas, faz o que faz guiado por uma forte ideologia, ele tem que salvar e defender os Estados Unidos e o povo americano a qualquer custo. Nem que para isso, ele tenha que matar, torturar, violar a lei ou mesmo sacrificar sua própria vida. Dexter Morgan, protagonista da série Dexter, é um serial killer. Ele não pode fazer nada quanto a isso e sabe que matar é errado, mas ao invés de matar inocentes, ele redireciona seu ímpeto homicida para assassinar apenas criminosos.

No cinema também temos diversos exemplos. William Munny, de Os Imperdoáveis (1992), deixou a vida de crimes para trás, se arrepende e se envergonha dela. Contudo, por dinheiro, para garantir o futuro de seus filhos, decide aceitar um “último trabalho”. Durante todo o filme, ele tenta de todas as formas possíveis resistir a sua natureza criminosa, mas toda a situação o leva para o caminho em que ele tem que voltar a ser o criminoso que um dia foi.

Michael Corleone, de O Poderoso Chefão (1972), rejeita a máfia e sua “herança” como futuro chefe da mais poderosa família mafiosa dos Estados Unidos. Mas uma tentativa de assassinato contra seu pai, Don Vito Corleone, e sua subsequente morte, o leva a ter que assumir o papel de chefão da máfia, que ele tanto resistia em assumir. Novamente, um personagem que é levado a cometer atos que não quer, por circunstâncias do destino.

Dexter Morgan (Michael C. Hall), serial killer que só mata criminosos. Distribuição: Showtime.
Dexter Morgan (Michael C. Hall), serial killer que só mata criminosos. Distribuição: Showtime.

Por isso tudo, é que os anti-heróis acabam por despertar a simpatia dos espectadores. Por serem tão humanos, tão complexos e serem obrigados a fazer escolhas e tomar caminhos difíceis, esses personagens acabam fazendo com que os espectadores se coloquem em seu lugar e, com isso, se identifiquem com eles. Isso explica muito o sucesso desse tipo de personagem.

Conclusão

E aí, gostou do nosso texto? Tentamos explicar com detalhes o que é um anti-herói, sua história tanto na literatura quanto no cinema e na televisão, além de explicar seu uso, tudo isso utilizando diversos exemplos. Se você gostou do nosso texto, não se esqueça de deixar um comentário, ele é muito importante para nós. E você, tem algum anti-herói que você gosta ou se identifica? Se sim, nos conte nos comentários.

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