Há algo perturbadoramente fascinante na escuridão monocromática de Hatred. Pense nas noites de lua cheia, por exemplo, onde as sombras parecem ter vida própria, ou nos becos estreitos das cidades, onde até o som das suas próprias pisadas é suficiente para acelerar o coração.
O desconhecido sempre exerceu um certo magnetismo sobre muitos de nós — uma atração inexplicável que já nos levou a olhar debaixo da cama, a acender a lanterna do celular em direção a um barulho estranho, ou, em tempos mais estranhos, a clicar em um ícone de jogo que prometia nos mostrar algo que talvez não deveríamos ter visto.
Hatred não é só um jogo violento ao estilo Postal; É um convite para atravessar o véu do óbvio e mergulhar de cabeça em um mundo onde a moralidade é um conceito maleável e onde as regras não foram apenas quebradas, mas jogadas ao vento. Mas por quê?
Lançado em 2015, esse título da Destructive Creations não é facilmente categorizável até hoje. Na verdade, ele nem oferece um herói para torcer, nem mesmo um vilão tradicional para odiar.
Em vez disso, nos colocar na pele de um homem sem nome (e isso “não é importante”), com cabelos longos e escuros como uma noite sem estrelas, cujos olhos são buracos negros de desprezo. O objetivo do cara? Apenas destruir. Sem explicações. Sem redenção.
Mas por que Hatred fez tanto estardalhaço no lançamento? Em um mundo que já era repleto de jogos violentos, de guerras espaciais a apocalipses zumbis, por que esse jogo, especificamente, nos faz sentir como se estivéssemos observando algo proibido?
Talvez a resposta esteja justamente na simplicidade brutal de sua proposta: a ausência de justificação, a recusa de motivos confortáveis que expliquem ou redimam as ações do protagonista genocida. Ao nos fazer encarar o abismo sem adornos, Hatred nos obriga a confrontar algo que preferiríamos manter enterrado.
E essa é a chave. Porque, no fundo, o que Hatred nos apresenta não é apenas um homem perturbado em um ataque de violência sem sentido. É um espelho, um reflexo do canto mais escuro e negligenciado da psique humana, onde todos os pensamentos não ditos e os impulsos reprimidos se escondem, esperando por um momento de fraqueza para emergir.
Então, o que faz um jogo como Hatred transcender os limites da tela e se enraizar tão profundamente na mente do jogador? Será o mero choque de sua violência ou algo mais? Algo que cutuca a alma e nos faz questionar até onde realmente estamos seguros em nossos próprios pensamentos?
Seja qual for a resposta, ela não será encontrada aqui sob a luz confortável da introdução. Ela só pode ser descoberta caminhando nas sombras, onde o desconhecido nos chama ao longo desse artigo. Se você estiver afim de dar esse passo, venha conosco até o final. Há muito mais a explorar hoje.
Hatred e a Polêmica no Lançamento
Para refrescarmos a memória: quando anunciaram Hatred em outubro de 2014, ele logo de cara provocou uma onda de indignação e discussão na comunidade de videogames e, principalmente, na mídia especializada. Desenvolvido pelo estúdio Independente polonês Destructive Creations, o jogo chamou atenção por sua proposta chocante.
Um tipo diferente de jogo de terror, onde o jogador assume o controle de um perseguidor misantrópico cujo único objetivo é eliminar o maior número possível de pessoas inocentes. Essa proposta, brutal e sem rodeios, foi percebida por muitos como mais um ataque deliberado contra os limites morais da indústria do entretenimento.
A controvérsia começou com o próprio trailer de revelação. Ele mostrava cenas de violência extrema, com gráficos monocromáticos, estilo Sin City, e um protagonista louco que declarava seu ódio pela humanidade.
Repare que a estética sombria e a trilha sonora tensa e pesada do trailer serviram para amplificar a sensação de desconforto e repulsa. O vídeo foi rapidamente disseminado pela internet na época, gerando reações polarizadas.
Alguns viam a proposta do jogo como de mau gosto que glorificava o ódio e a violência indiscriminada, outros defendiam o direito dos desenvolvedores de explorar qualquer tema, por mais perturbador que fosse, como uma expressão de liberdade criativa.
E um dos momentos mais marcantes da polêmica ocorreu quando a Valve, responsável pela plataforma de distribuição de jogos Steam, removeu Hatred de seu programa Steam Greenlight logo após o início da votação da comunidade.
A remoção foi recebida com críticas tanto dos defensores da liberdade de expressão quanto daqueles que viam a ação como um ato de censura prévia.
O interessante é que, em resposta ao clamor da comunidade gamer, o próprio Gabe Newell, fundador da Valve, interveio pessoalmente para restaurar o jogo no Steam Greenlight, admitindo que a decisão inicial havia sido um erro.
A reviravolta transformou Hatred em um fenômeno de marketing não intencional, e o jogo acabou recebendo um enorme apoio da comunidade PC gamer, com votos suficientes para ser aprovado na plataforma.
Outra controvérsia veio na classificação etária. Hatred foi um dos poucos jogos a receber a classificação “Adults Only” (AO) da ESRB (Entertainment Software Rating Board), uma decisão que efetivamente o bania de muitas plataformas, como o PlayStation e o Xbox, e limitava sua venda em lojas físicas.
Para se ter uma ideia, a classificação “AO” é raramente utilizada e, muitas vezes, reservada para jogos com conteúdo sexual explícito. No caso de Hatred, foi a violência extrema e a falta de um contexto justificável que levaram a essa classificação.
A reação da mídia também foi um grande falatório na polêmica. Muitos jornalistas e críticos de jogos condenaram Hatred como uma provocação sem substância, criada apenas para chocar e chamar atenção. Eles argumentaram que o jogo não tinha um propósito narrativo ou mecânico além da violência, e que era irresponsável em um momento em que os debates sobre o impacto dos videogames violentos na sociedade estavam em alta.
Por outro lado, defensores do jogo argumentaram que Hatred era uma forma válida de arte, uma expressão do lado sombrio da natureza humana que merecia ser explorada, assim como qualquer outro tema em games, literatura ou no cinema.
Essa dualidade fez com que Hatred se tornasse um símbolo no debate maior sobre a liberdade de expressão nos videogames. Para os criadores, a polêmica era parte da ideia.
Eles posicionaram Hatred como uma reação contra o que consideravam uma tendência de censura e “politicamente correto” na indústria de games, onde certos temas e representações estavam sendo evitados para agradar audiências mais amplas.
O efeito dessa polêmica foi um pico de popularidade inesperado na Steam. Apesar da rejeição de muitas plataformas e da crítica especializada, Hatred conseguiu vender bem o suficiente para garantir seu lugar na história dos videogames como um dos lançamentos mais controversos de todos os tempos.
A Destructive Creations não apenas forçou a indústria a reconsiderar os limites do conteúdo aceitável nos jogos, mas também fez com que jogadores e desenvolvedores refletissem sobre até onde estamos dispostos a ir em nome da liberdade criativa.
Mas não é só isso… Ao olhar mais de perto, podemos descobrir nuances filosóficas e psicológicas em Hatred que a mídia especializada deixou passar despercebidas — e é exatamente isso que vamos explorar a seguir.
A Sombra do Niilismo em Hatred
Você conseguiria se imaginar em um mundo onde nada tem propósito? Onde as regras que você conhece, aquelas que dão forma e sentido à vida cotidiana, simplesmente não se aplicam. Um lugar onde a moralidade, a ética e o próprio conceito de certo e errado não passam de ilusões frágeis, prontas para serem esmagadas sob o peso da realidade cruel.
Esse é o mundo de Hatred, e o cara que você controla nele é o puro reflexo do niilismo — para quem não é familiarizado, se trata de uma filosofia que rejeita todas as verdades convenientes que nos confortam.
Friedrich Nietzsche, o filósofo que alertou sobre o advento do niilismo no século XIX, descreveu esse fenômeno como uma crise iminente na civilização.
Em suas palavras, “o niilismo não significa apenas que os valores supremos se desvalorizam, mas que falta a resposta para ‘Por quê?'”. No universo de Hatred, essa ausência de resposta é uma constante sufocante.
O protagonista não tem nome, não tem passado revelado, nem um motivo claro para suas ações. Ele é, em essência, um agente do caos, guiado apenas por um profundo desprezo pela existência.
Mas, pera lá, antes de descartarmos isso como mera ficção, vale lembrar que o niilismo não é apenas um conceito filosófico abstrato. Ele já lançou sua sombra sobre o mundo antes.
Em 1869, na cidade de São Petersburgo, na Rússia, um jovem chamado Sergey Nechaev se tornou uma figura de destaque no movimento niilista, que pregava a destruição total das instituições políticas e sociais. Nechaev acreditava que a sociedade deveria ser reduzida a cinzas para que algo novo pudesse surgir.
E mesmo que esse movimento fosse pequeno, conseguiu deixar um rastro de terror e violência por onde passou. Nechaev era, para muitos, um fanático. Mas para aqueles que o seguiam, ele era um visionário, alguém disposto a ir até o fim para provar que a sociedade, como era conhecida, era uma prisão da qual precisavam escapar.
Só para ter uma ideia, houveram atos de violência, incluindo o assassinato de um de seus próprios companheiros de grupo, Ivan Ivanov, em 1869. Nechaev acreditava que esse tipo de ação radical era necessário para promover a revolução. Doido né!?
Agora, observe o protagonista de Hatred. Ele poderia ser visto como um descendente espiritual do próprio Nechaev, um eco desse mesmo desprezo pelas instituições e pela ordem social.
Mas, enquanto Nechaev via a destruição como um meio para um fim — a criação de um novo mundo —, o protagonista de Hatred parece operar em um nível ainda mais profundo de niilismo: ele destrói não para criar, mas simplesmente porque nada mais parece importar.
Se alguém o perguntasse qual é o sentido da vida, sua resposta seria bem direta: “Acabar!”
A existência, para ele, é um fardo, e todos que nele habitam são alvos merecedores de seu ódio indiscriminado. E aqui está o ponto crucial: Hatred não oferece nenhuma justificativa. Apenas uma expectativa extremamente pessimista de sua realidade.
Não há uma narrativa de redenção, nem uma desculpa psicológica fácil para as ações do protagonista. Em vez disso, o jogo nos força a olhar para o abismo do niilismo sem desviar o olhar, a confrontar a ideia de que, talvez, o mundo realmente não tenha significado.
Nietzsche acreditava que o niilismo era uma fase transitória, uma passagem dolorosa para uma nova forma de valores; mas o protagonista de Hatred nos deixa com a sensação inquietante de que, para alguns, essa é uma passagem sem volta.
Então, por que jogar um jogo que nos obriga a confrontar a futilidade e o vazio? Talvez a resposta esteja na nossa própria fascinação com o abismo, com o desconhecido. Talvez, como Nietzsche, precisamos olhar para o niilismo para encontrar algo mais profundo dentro de nós mesmos.
Ou talvez, só talvez, sejamos como o protagonista de Hatred, desejando ver até onde realmente podemos ir quando todas as máscaras caem e o sentido de tudo se dissolve na escuridão. Na real, quem sabe?
A Psicologia da Desumanização
O jogo não fornece respostas, apenas amplia as perguntas. E, ao final, somos deixados para refletir: até onde vai nossa capacidade de desumanizar o outro — e a nós mesmos — quando somos levados ao extremo?
Imagine-se em um tribunal lotado na antiga Alemanha de 1961. No banco dos réus, um homem de meia-idade, aparência comum, terno escuro. Seu nome? Adolf Eichmann, o arquiteto da Solução Final nazista. As acusações? Crimes contra a humanidade, genocídio.
Quando julgado por seus atos, ele se defende: “Eu só estava cumprindo ordens”. Essa frase banal revela algo perturbador: como um ser humano comum, alguém que poderia ser o seu vizinho, foi capaz de desumanizar milhões de outros seres humanos, reduzindo-os a números, registros, “problemas” a serem resolvidos no escritório? Esse é o cerne da desumanização, simplesmente.
Veja bem, a capacidade de ver o outro não como um indivíduo, mas como algo menos, como um obstáculo, um número, um inimigo abstrato. Em Hatred, esse conceito é levado ao extremo. O protagonista, um homem cuja aparência é mais um vulto do que uma figura definida, não vê pessoas ao seu redor.
Ele vê apenas alvos, sombras indistintas que merecem ser eliminadas. Para ele, a humanidade não tem rosto; todos são reduzidos ao mesmo denominador de desprezo.
Para termos uma ideia melhor, a psicologia nos diz que a desumanização é uma defesa, uma forma de se distanciar emocionalmente das consequências das próprias ações. Em situações de conflito, é um mecanismo que permite que soldados matem sem hesitação ou que guardas de prisões tratem prisioneiros de forma cruel.
Pense nos experimentos de Philip Zimbardo, o psicólogo que, em 1971, organizou o famoso “Experimento da Prisão de Stanford”. Voluntários comuns, ao se tornarem “guardas” em um ambiente simulado de prisão, rapidamente adotaram comportamentos abusivos e desumanizadores em relação aos “prisioneiros”, mesmo sabendo que era apenas uma simulação.
O que levou aqueles indivíduos, em tão pouco tempo, a agir como tiranos?
A resposta, talvez, esteja na forma como o ser humano, quando colocado em um contexto de poder sobre o outro, pode facilmente se desumanizar e desumanizar os outros. Quando nos é dado o controle total, o poder de decidir sobre a vida e a morte, nossos instintos mais sombrios podem se manifestar. E é exatamente essa dinâmica que Hatred explora.
Hatred coloca o jogador em uma posição onde ele deve confrontar sua própria relação com o poder, a moralidade e a capacidade de se desconectar da humanidade de suas vítimas. Esse desconforto não é um acidente; é o ponto central da experiência.
Talvez Hatred funcione como um experimento psicológico de outra natureza — um que questiona até que ponto estamos dispostos a nos distanciar emocionalmente, a desligar nossa empatia, quando todos os outros fatores são retirados da equação.
Será que, como Eichmann, buscamos desculpas confortáveis para nossas ações mais sombrias? Ou, como os guardas de prisões russas, somos facilmente transformados em algo que, em um contexto diferente, consideraríamos monstruoso?
A Cultura do Isolamento em Hatred
Estamos mais conectados do que nunca, e ainda assim, o isolamento social é a epidemia invisível que se alastra pelas ruas movimentadas das cidades e nas reuniões de família ou amigos.
Mas o que acontece quando esse isolamento se transforma em ressentimento? Quando a solidão encontra o ódio? Parece tema de música do Slipknot em seu auge, mas é apenas o momento atual.
Em Hatred, o protagonista representa uma forma radical de individualismo e o seu desprezo pela sociedade é tão profundo que ele se vê como um agente de uma vingança sem propósito, um justiceiro que age sem causa. Ele é o produto final de um mundo onde a conexão humana se desfez, e o “eu” se tornou a única realidade inquestionável.
Mas, tipo assim, o individualismo não era para ser algo bom?
Desde o Iluminismo, fomos ensinados a valorizar a liberdade individual, a autossuficiência e a busca pessoal por felicidade. Correto? E, ainda assim, a história moderna está repleta de exemplos de como o individualismo pode se desdobrar em isolamento, desespero e, em casos extremos, violência.
Pense em figuras como Ted Kaczynski, o “Unabomber”, que se isolou em uma cabana isolada na floresta, totalmente convicto de que a sociedade moderna era uma prisão tecnológica. Pois é, acredite ou não, ele acabou se tornando um terrorista que, de sua solidão, lançou uma campanha de violência contra um mundo que considerava irreparavelmente corrompido.
O protagonista de Hatred poderia muito bem ser um seguidor de Kaczynski, já que ele ele é um tipo de “lobo solitário”. O homem separado de qualquer estrutura social, para quem a violência é a única resposta ao vazio que sente.
Mas onde Kaczynski tinha um manifesto, o protagonista de Hatred não oferece nenhuma filosofia elaborada, nenhuma crítica articulada. Sua violência é puramente instintiva, uma reação primária ao isolamento absoluto.
E o que Hatred nos mostra é que, ao invés de ser apenas uma crítica à violência, é também uma crítica ao extremo do individualismo contemporâneo. Em um mundo onde cada vez mais buscamos significado através de realizações pessoais e conquistas individuais, o jogo nos força a pensar sobre o que acontece quando o “eu” se torna a única realidade que importa.
Quando o “outro” é visto apenas como um obstáculo para nossos próprios desejos e necessidades? Talvez, como o protagonista de Hatred, nos encontremos em uma posição onde a destruição dos outros parece ser o único meio de afirmar nossa própria existência. Infelizmente isso é observado em vários aspectos da vida, até mesmo em família.
Este é o paradoxo do individualismo radical: enquanto buscamos nos libertar de todos os laços, de sermos “desapegados”, acabamos nos prendendo a nós mesmos, e o que começa como um desejo por liberdade se transforma em uma prisão construída por nossas próprias mãos.
E talvez seja exatamente isso que o Hatred ilustrar: que o maior inimigo não é o outro, mas o vazio que cresce dentro de nós quando o mundo ao nosso redor se reduz a um espelho de nossas próprias inseguranças e medos.
Ritual de Destruição
Se parar para pensar, em termos antropológicos, Hatred poderia ser visto como um reflexo da necessidade humana de encontrar significado até mesmo no caos.
Veja bem, em um mundo moderno, em que as tradições foram em grande parte secularizadas e os rituais antigos perderam seu poder simbólico, o jogo talvez represente uma tentativa distorcida de reintroduzir a ritualização.
No lugar de deuses e demônios, temos o próprio vazio existencial. O sacrifício é a própria humanidade, transformada em alvos, sem rostos ou nomes.
E tem uma grande ironia nisso, pois ao criticar a sociedade moderna e seu aparente distanciamento dos rituais, Hatred talvez esteja tentando cumprir exatamente o que condena. Ele cria um espaço onde a violência, desprovida de contexto moral, se torna o próprio rito de passagem e um caminho para confrontar o vazio de nossa era digital.
Pode parecer exagero, mas, ao longo da história, a humanidade sempre encontrou formas de dar significado ao caos.
E se Hatred for apenas mais uma dessas formas, uma tentativa desesperada de conferir sentido ao insensato, então talvez a violência, nesse jogo, não seja apenas um fim em si mesma, mas um vislumbre perturbador de que, em algum nível profundo, todos ainda buscamos algo que transcenda o ordinário, mesmo que esse “algo” nos leve diretamente ao abismo.
Então é isso, pessoal! Espero que tenham gostado da nossa analise critica. Se você quiser estender a discussão e apresentar algum ponto de vista não explorado, deixe aqui pra gente nos comentários. Até mais!