Pôster de A Substância.
Pôster de A Substância.

Logo na primeira cena de A Substância vemos a gema de um ovo sendo injetada com uma substância e depois se dividindo em duas. Logo depois, vemos Elisabeth Sparkle (Demi Moore) recebendo sua estrela na calçada da fama no auge de sua carreira. Estrela essa que vai deixando de atrair público a medida em que a própria Sparkle vai sendo esquecida e sua carreira vai entrando em decadência. Toda essa passagem de tempo é mostrada de forma genial em uma cena que foca totalmente na estrela na calçada da fama, sem sequer precisar mostrar mais nada a sua volta.

Essas duas cenas iniciais dão o tom de A Substância. Não apenas do enredo do filme, que é justamente sobre uma atriz e celebridade antes cultuada e que agora está em decadência total devido, principalmente, a seu envelhecimento, mas também dá o tom sobre a forma que a diretora Coralie Fargeat escolheu para contar essa história. A Substância é uma alegoria, totalmente focado em símbolos e significados.

Por isso também, Fargeat não está preocupada com o realismo do enredo do filme em si. Até porque, o enredo de A Substância é tão engenhoso e criativo que seria impossível transformá-lo em algo realístico. Dessa forma, a cineasta tem uma ideia na cabeça e usa o enredo do filme para comunicar essa ideia ao público que assisti a A Substância. O filme é uma das mais criativas e interessantes obras lançadas no cinema no ano passado. Por isso, decidimos fazer uma análise completa sobre esse filme. Veja a seguir.

A Substância – Uma alegoria sem compromisso com a realidade

A primeira coisa que o espectador vai notar logo de cara é que A Substância não tem qualquer compromisso com o realismo ou com a realidade. Isso porque, o filme é uma alegoria e, portanto, utiliza de simbolismos para poder passar para o espectador uma determinada mensagem. Tudo em A Substância, desde a primeira até a última cena, é carregado de simbolismo. Absolutamente nada está ali por acaso.

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A roteirista e cineasta Coralie Fargeat queria mostrar que após os 50 anos as mulheres, principalmente, as que dependem de sua aparência, são descartadas e substituídas por outras mais jovens. Para isso, concebeu a história de uma atriz premiada, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), que ao chegar nessa idade, acaba por ser demitida de seu programa televisivo, onde ela comanda um programa de aeróbica, algo típico da televisão norte-americana nos anos 1980 e 1990.

O fato de Sparkle comandar justamente um programa televisivo de aeróbica é simbólico, já que isso exige que ela esteja em boa forma física, ou seja, sua aparência é fundamental para que ela mantenha seu emprego. E após os cinquenta anos de idade fica cada vez mais difícil manter uma boa forma física. Fato, aliás, que o personagem de Dennis Quaid deixa muito claro para ela.

Demi Moore em cena de A Substância (2024). Distribuição: Mubi
Demi Moore em cena de A Substância (2024). Distribuição: Mubi

A demissão fragiliza bastante a autoestima de Sparkle, ainda mais porque ela fica sabendo que será demitida após escutar uma conversa de banheiro. Após um acidente de carro, ela é apresentado a “A Substância”, que ela ignora peremptoriamente. No entanto, após uma noite de bebedeira, fica claro que ela não tem mais amor próprio. E é nesse momento, que ela recorre a “A Substância”. Sua “cópia”, chamada de “Sue”, nasce de uma abertura em suas costas, em uma cena que lembra um parto, inclusive, com sons de líquido amniótico.

Essa talvez seja a cena mais icônica do filme, até porque foi ela a primeira cena escrita por Fargeat. Assim, essa foi a cena que deu origem a todo o filme. Depois do nascimento de Sue, as duas personagens seguem caminhos totalmente diferentes. Enquanto Sparkle usa sua semana acordada para assistir televisão e cozinhar, saindo raramente de casa, Sue usa sua semana acordada para “aproveitar a vida”, utilizando sua juventude e beleza para conquistar todos a seu redor.

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Nesse ínterim, Sue também é escolhida para substituir a própria Elisabeth Sparkle no que antes era seu programa de televisão. Com o tempo, Sue não quer mais ficar adormecida por uma semana, por entender que Elisabeth não utiliza bem seu tempo acordada. Por outro lado, a própria Elisabeth desenvolve cada vez mais inveja de Sue. E é aí, que os problemas começam a ocorrer, já que o “equilíbrio” (uma semana para Sue e uma semana para Elisabeth) que é tão importante começa a ser desrespeitado.

Dessa forma, apesar de serem “uma só”, como é deixado claro várias vezes no filme, as duas desenvolvem uma enorme rivalidade. A inveja de Elisabeth em relação a Sue se torna doentia, enquanto que Sue desenvolve um enorme desprezo por Elisabeth. Esses sentimentos culminam no final do filme, em uma das poucas cenas em que as duas atrizes contracenam.

Elisabeth tenta competir com a juventude de Sue, mas não consegue. Isso faz com que sua autoestima já fragilizadíssima seja destruída de uma vez por todas. Isso é mostrado de forma clara em uma das cenas do filme, onde a personagem tenta se arrumar para um encontro, mas nunca está feliz com o resultado que vê no espelho. Isso tudo, novamente, deixa claro o aspecto simbólico de A Substância, que utiliza essa cena para demonstrar como a falta de autoestima distorce a realidade.

A rivalidade entre Elisabeth e Sue faz com que as duas não percebam que dependem uma da outra. Sue não pode existir sem Elisabeth, já que ela é a “matriz”. Já Elisabeth não pode sobreviver sem Sue, pois sua “versão melhorada” é tudo de “amável” que restou dela depois de tudo. Fato que a própria personagem admite em um dos momentos decisivos do filme.

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O final da A Substância também é cheio de simbolismos, desesperada para criar uma “versão melhor” de si mesma, Sue tenta subverter todas as regra da “substância” e o resultado é monstruoso. Aqui, Coralie Fargeat mostra a busca incessante do ser humano por uma versão melhorada de si mesmo, em um mundo onde ninguém é considerado perfeito da forma que é. Essa busca é ainda pior para as mulheres, já que a aparência física delas costuma estar sempre em julgamento.

Fargeat cria um final catártico, onde ela parece dar vazão a todos os sentimentos e pensamentos que a fizeram escrever e dirigir A Substância. Aliás, o final também é catártico para Elisabeth Sparkle e tem um simbolismo claro: todo mundo é descartável. Todos serão, uma hora ou outra, substituídos por versões mais jovens de si mesmos. Nada dura, tudo é passageiro e todo sucesso é ilusório.

Personagens masculinos caricaturais e atuações exageradas

O elenco de A Substância é enxuto e é basicamente constituído por três pessoas: duas atrizes e um ator. São esses três personagens os únicos relevantes no enredo de A Substância. O filme é basicamente conduzido sob o ponto de vista das duas personagens femininas, Elisabeth Sparkle e Sue. O único personagem masculino, Harvey (Dennis Quaid), é o produtor que demite Elisabeth e contrata Sue.

Como A Substância é centrado nas personagens femininas, Harvey é o personagem mais exagerado e caricatural de todo o filme. E isso é proposital, já que A Substância é todo centrado no universo feminino e, portanto, enxergamos o mundo sobre o olhar das personagens femininas. Dessa forma, nos acompanhamos a história do ponto de vista delas. Por isso também, Harvey é mostrado de forma caricatural desde sua primeira cena.

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Quase todas as vezes em que o personagem aparece é através de close-ups extremos, sempre gritando, cheio de trejeitos e maneirismos. Harvey é também sem educação, arrogante, superficial, trata todas as mulheres como objetos, é egoísta e só pensa em seus próprios objetivos. Coralie Fargeat, propositalmente, escolhe não dar qualquer profundidade a ele. Assim, fica claro sua natureza caricatural. Isso fica claro, por exemplo, na icônica cena do almoço em que Harvey come camarão com as mãos, sujando a mesa e deixando uma baderna a sua volta.

Sue (Margaret Qualley) e Harvey (Dennis Quaid) em cena de A Substância (2024). Distribuição: Mubi.
Sue (Margaret Qualley) e Harvey (Dennis Quaid) em cena de A Substância (2024). Distribuição: Mubi.

Os outros personagens masculinos são praticamente utilizados apenas como objetos sexuais ao longo do filme. Nenhum deles tem qualquer tipo de personalidade. Troy (Oscar Lesage), o primeiro “namorado” de Sue, até mostra alguma personalidade em uma cena em que ele é retratado como arrogante e mal-educado. Já Diego (Hugo Diego Garcia), o segundo namorado de Sue, parece estar em A Substância apenas para mostrar a bunda. Nesse sentido, ele é tratado da mesma forma que muitos personagens femininos são tratados em outros filmes.

A Substância usa o exagero para passar sua mensagem

Aliás, o exagero em A Substância não está apenas nos personagens masculinos, mas no filme como um todo. Isso porque, Coralie Fargeat utiliza o exagero justamente para demonstrar seu ponto de vista. Por esse motivo, A Substância faz muito uso de close-ups. Quase sempre quando Fargeat precisa destacar um fala ou um momento de algum personagem, ela utiliza os close-ups extremos. Esses close-ups quase sempre feitos com a câmera baixa destacam propositalmente detalhes dos rostos dos atores e muitas vezes mostram até mesmo seus dentes escurecidos.

O exagero também está em outros aspectos do filme. Como todo terror corporal, A Substância também explora intencionalmente violações gráficas ou psicologicamente perturbadoras do corpo das duas personagens principais. Dessa forma, essas deformações, muitas vezes, exageradas são utilizadas por Fargeat para chocar o público e também para expor seu ponto de vista. Principalmente, na parte final do filme essas deformações atingem um outro nível, chegando até mesmo a se tornarem grotescos.

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Da mesma forma, o uso de sangue e fluídos corporais em A Substância é igualmente exagerado de propósito. Somente a cena final do filme, que é provavelmente a mais chocante da obra, utilizou cerca de 21 mil litros de sangue falso. Sendo que chuveiros tiveram que ser colocados do lado de fora do set de filmagens para que os figurantes pudessem se limpar após a filmagem da cena, devido a enorme quantia de sangue falso utilizado em cena.

Tudo isso, é muito bem utilizado em A Substância, justamente para transmitir a mensagem que Coralie Fargeat quer passar. Principalmente, o sangue no filme é utilizado de uma forma quase Tarantiniana, enquanto que as deformações corporais lembram bastante o cinema de David Cronenberg, um dos mestres do terror corporal. Inclusive, a parte final de A Substância lembra, em muitos aspectos, o clássico A Mosca (1986), dirigido pelo próprio Cronenberg.

A Substância – Um filme carregado por duas atuações excepcionais

Além dos aspectos simbólicos e técnicos, um dos principais pontos fortes de A Substância é a qualidade de seu elenco, principalmente, as atuações de Demi Moore e Margaret Qualley. É muito difícil, ou mesmo quase impossível, desassociar a atuação das duas atrizes. Até porque, elas interpretam facetas de um mesmo personagem, já que Sue e Elisabeth Sparkle são, como é repetido várias vezes ao longo do filme, “uma só”.

Além disso, elas ocupam mais ou menos o mesmo tempo de tela e têm, igualmente, a mesma importância para o desenvolvimento do enredo de A Substância. Talvez por sua atuação ser mais dramática, já que é seu personagem quem passa pelos momentos mais difíceis na trama, Demi Moore tenha se destacado mais do que Margaret Qualley. Além disso, a interpretação de Moore é mais fisicamente demandosa e sua transformação mais radical.

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Por isso também, Moore foi indicada a todas as principais premiações do ano, incluindo o Oscar, vencendo a maioria deles. Enquanto que Qualley recebeu apenas algumas indicações aqui e alí, sendo as mais importantes delas ao Critics’ Choice Awards e ao Globo de Ouro. No entanto, é inegável a importância dela para o filme.

Ainda mais se considerarmos o fato de A Substância ser um filme que depende bastante do desempenho do seu elenco para funcionar, já que seu roteiro é fortemente ancorado na atuação dos atores e sua estética é muito focada em close-ups extremos e em dar destaque para expressões e reações dos intérpretes. Dessa forma, seus rostos estão sempre em primeiro plano, representando um grande desafio para o elenco do filme.

Além disso, o elenco de A Substância é bastante reduzido e, como dito antes, conta com apenas três personagens (e, portanto, igualmente apenas três intérpretes) importantes. Além de Sue e Elisabeth Sparkle, temos também o produtor Harvey (Dennis Quaid). Dessa forma, era importante escolher os atores e atrizes ideais para interpretar esses personagens. Uma escolha errada poderia levar tudo a perder.

Por esse motivo, Coralie Fargeat foi meticulosa na escolha da atriz que interpretaria Elisabeth Sparkle, já que como ela é a origem de tudo, a escolha de quem interpretaria Sue dependia justamente dessa primeira escolha. Fargeat também queria uma atriz já consolidada em Hollywood para interpretar Elisabeth devido ao fato de que o papel tem uma qualidade metalinguística, já que faz referência clara a Hollywood e a indústria do entretenimento.

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Por isso, era importante para o filme que a sua protagonista fosse identificada pelo público. Fargeat, no entanto, não acreditava que Demi Moore aceitaria o papel exatamente devido a essa qualidade metalinguística do personagem. Dessa forma, a cineasta acreditava que a famosa atriz não ia queria “destruir sua imagem” atuando em um filme que fazia uma crítica direta ao star system e que era protagonizado por uma personagem que havia sido famosa e que agora estava envelhecida e decadente.

No entanto, sem nada a perder, Fargeat resolveu enviar o roteiro de A Substância para a atriz e, devido a insistência de seu agente, Moore aceitou lê-lo. Atraída pela sua criatividade, a atriz aceitou o papel, mas acreditava que a obra ou seria um fracasso total ou uma sucesso imenso. Somente depois de ver a reação do público na estreia do filme, foi que Moore percebeu que A Substância realmente seria, no final das contas, um sucesso.

Já com Demi Moore escalada para o papel principal, a cineasta foi atrás de uma atriz jovem que fosse parecida fisicamente com ela para interpretar sua “versão melhorada”, Sue. Quando Fargeat finalmente se encontrou com Qualley, ela sentiu uma energia comum e gostou da experiência anterior da atriz como dançarina, algo que seria útil para o filme. Para se preparar para o papel, Qualley teve que levantar peso para conseguir atingir o físico requerido por sua personagem, que no filme é um símbolo sexual.

Elisabeth Sparkle (Demi Moore) pouco antes de utilizar a substância em A Substância (2024). Distribuição: Mubi
Elisabeth Sparkle (Demi Moore) pouco antes de utilizar a substância em A Substância (2024). Distribuição: Mubi

Já Harvey, o único personagem masculino significativo de A Substância, seria interpretado por Ray Liotta. No entanto, ele faleceu quando as filmagens já tinham começado, sendo substituído por Dennis Quaid. Fica claro que as escolhas de Fargeat foram acertadas, já que as interpretações do elenco de A Substância estão entre os aspectos mais elogiados da produção.

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A Substância e seus efeitos práticos e maquiagem de primeira linha

Dois dos principais pontos altos de A Substância são sua maquiagem e seus efeitos práticos. Diferentemente da maioria dos filmes atuais que utilizam bastante imagens geradas por computador, o famoso CGI, A Substância prefere utilizar mais efeitos práticos, com o CGI sendo usado apenas em cenas onde não seria possível utilizar efeitos práticos ou para melhorar o que já foi feito com efeitos práticos.

A diretora Coralie Fargeat fez essa escolha por acreditar que apenas o uso de efeitos práticos poderia transmitir ao público de forma apropriada os temas de violência que ela acreditava que deveriam ser transmitidos. Para realizar esse trabalho Fargeat contratou o maquiador e designer de produção Pierre-Olivier Persin. Liderando uma equipe que continha 15 profissionais, Persin concebeu ao lado de Fargeat praticamente toda a parte de maquiagem de A Subtância, incluindo todas as transformações e a aparência final da personagem Elisabeth Sparkle.

Para isso, Persin fez uso extensivo de maquiagem prostética, utilizando, inclusive, diversas peças de corpo inteiro. Devido ao fato de interpretar Elisabeth Sparkle, Demi Moore foi quem mais utilizou a maquiagem criada por Persin e também quem mais sofreu com ela, já que a aplicação de algumas próteses levava até sete horas para ser concluída, fazendo com que Moore só tivesse uma ou duas horas por dia para filmar suas cenas.

Isso porque, Elisabeth é a personagem que mais passa por mudanças físicas em A Substância, indo de uma mulher “normal” até uma criatura envelhecida e completamente deformada no final do filme. Apesar disso, no entanto, foi Margaret Qualley quem teve que vestir a prótese mais pesada e complexa de A Substância, já que é ela quem interpreta “Monstro Elisasue” a criatura final e também mais monstruosa do filme e que foi totalmente criada utilizando efeitos práticos.

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A aplicação da maquiagem em Qualley para a criação de “Monstro Elisasue” levava seis horas para ser concluída, sendo que as cenas com a criatura levaram oito dias para serem rodadas. A maquiagem era tão pesada que deixou o rosto da atriz coberto de acne, que levou um ano para ser totalmente curado.

Claramente, no entanto, o trabalho de Persin e a decisão de Fargeat de utilizar efeitos práticos funcionaram. Até porque, a maquiagem de A Substância não apenas foi um dos aspectos mais elogiados do filme, mas também ajudou a criar o clima e o choque que a diretora queria que o público sentisse ao assistir a A Substância. Pierre-Olivier Persin trabalhou cerca de 11 meses em A Substância e seu trabalho lhe rendeu um Oscar, um BAFTA, um Critics’ Choice Awards, além de inúmeras outras premiações importantes.

Margaret Qualley vestindo uma prótese de corpo inteiro para A Substância. Foto: Christine Tamalet/Universal Pictures
Margaret Qualley vestindo uma prótese de corpo inteiro para A Substância. O filme venceu o Oscar 2025 de Melhor Maquiagem e Penteado. Foto: Christine Tamalet/Universal Pictures

O choque e o realismo do trabalho de Persin funcionou perfeitamente em A Substância e, por isso, pode representar uma virada importante no cinema comercial moderno e pode incentivar que outros diretores também preferiam utilizar efeitos práticos e deixem as imagens geradas por computador, tão em voga atualmente, um pouco de lado.

Nudez e sensualidade como instrumentos simbólicos em A Substância

Outra característica muito destacada de A Substância é a forte presença de cenas de nudez e também a exploração da sexualidade feminina. Além disso, as cenas mais sexuais do filme são exploradas ao máximo com close-ups extremos no rosto, nádegas e até nas partes íntimas das atrizes em cena. Exemplo evidente disso, é a cena em que Sue dança uma versão da canção “Pump It Up!” na primeira gravação de seu programa de televisão.

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Aliás, a personagem Sue, interpretada por Margaret Qualley, é aquela cuja sensualidade é mais explorada. Até porque, é ela quem representa o ideal de beleza e sensualidade, principalmente, do ponto de vista masculino. Até por isso também, todos os homens ao longo de A Substância estão sempre “babando” na presença de Sue. Dessa forma, a exploração exagerada de seu corpo e de sua sensualidade também é proposital.

Isso porque, a diretora Coralie Fargeat usa isso para demonstrar que em um mundo masculino, beleza e a capacidade de sedução são as únicas coisas que importam. Nesse mundo, as mulheres são apenas objetos de desejo, sendo exploradas em troca de audiência e cliques. Não a toa, Sue faz um enorme sucesso, se tornando da noite para o dia, o maior sucesso da televisão e também uma campeã de audiência. Aliás, essa dualidade entre a sensualidade e beleza de Sue e a aparente falta de sensualidade e beleza de Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é muito explorada em A Substância.

Tanto é assim que o figurino de Sue é exíguo com mini-shorts, camisetas e biquínis cavados. Quase sempre a personagem está mostrando seu corpo. Já o figurino de Elisabeth Sparkle é o oposto. Ela parece estar quase sempre se escondendo, principalmente, a medida que o enredo vai evoluindo e ela vai se tornando uma deformidade. No início de A Substância ela até mostra alguma pele, mas a medida que o filme progride ela se esconde cada vez mais. Essa mudança também é acompanhada pela destruição completa de sua autoestima.

Aliás, ter que interpretar uma personagem tão sensual e sedutora foi um desafio para Margaret Qualley, já que a atriz diz que não é naturalmente sensual. Além disso, ela teve que levantar pesos para chegar no físico desejado. Apesar disso, Qualley utilizou próteses mamárias por cima de seus seios reais nas cenas de nudez, já que a diretora Coralie Fargeat queria que Sue tivesse uma imagem idealizada de beleza e um corpo parecido com o da personagem Jessica Rabbit. Como os seios naturais de Qualley não se encaixavam nesse padrão as próteses foram necessárias.

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Qualley também sofreu para gravar a cena em que ela dança “Pump It Up!”, sobre a qual já falamos brevemente acima. A primeira dificuldade foi para aprender a coreografia. Apesar de a atriz ter sido bailarina, o tipo de dança apresentada no filme é diferença daquela que ela costumava executar durante sua carreira de bailarina. A segunda, e principal, dificuldade ocorreu devido ao nível de sensualidade apresentada na cena, já que essa é a cena em que o corpo de Qualley é mais explorado, com inúmeros close-ups extremos em diversas partes de seu corpo.

Margaret Qualley como Sue em cena de A Substância (2024). Distribuição: Mubi.
Margaret Qualley como Sue em cena de A Substância (2024). Distribuição: Mubi.

A atriz não estava acostumada a esse nível de sensualidade. Por isso, para conseguir gravar a cena Margaret Qualley teve se “intoxicar” bebendo tequila e fumando maconha. Apesar da nudez em outras cenas de A Substância é inegável que essa é a cena em que o corpo de Qualley aparece com mais destaque. Até porque, essa é a cena que estabelece definitivamente Sue como objeto sexual. Por esse motivo, Coralie Fargeat faz questão de destacar a reação de todos que acompanham a gravação da dança, cameramans e produtores, todos ficam completamente encantados e seduzidos por Sue.

A Substância – Terror corporal, filme de mostro ou sátira

Apesar de ser “oficialmente” considerado um terror corporal, ou seja, um tipo de filme que explora intencionalmente violações gráficas ou psicologicamente perturbadoras do corpo humano, A Substância é um filme complexo que transita por vários gêneros cinematográficos. A primeira parte do filme, por exemplo, se assemelha bastante a um drama e somente a partir do momento em que ocorre o “nascimento” de Sue é que fica claro que A Substância é realmente um terror corporal.

No entanto, em sua parte final, A Substância se assemelha bastante a um filme de monstro. Além disso, A Substância também tem pitadas claras e evidentes de sátira e tem diversos trechos que podem até mesmo ser considerados cômicos. Ademais, é evidente que A Substância também bebe bastante da ficção científica, ainda mais devido a sua inspiração clara em A Mosca (1986), clássico da ficção científica e do terror.

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Cores, ângulos, trilha sonora e deformações sonoras

Como mencionamos acima, absolutamente tudo em A Substância está ali por algum motivo e claro que isso também inclui cores, ângulos de câmera, trilha sonora e até mesmo “deformações sonoras”. A trilha sonora composta pelo músico britânico Raffertie é majoritariamente composta de música eletrônica. No entanto, mesmo assim, ela é bastante diversa, com temas mais atuais e ao mesmo tempo também com a utilização de canções e temas mais antigos e nostálgico.

Raffertie tentou, através de sua trilha sonora, deixar claro a dualidade entre as personagens Elisabeth Sparkle e Sue. Além disso, ele também compôs um leitmotiv específico para a substância em si. Leitmotiv são temas curtos associados, frequentemente, a um personagem e que se repete muitas vezes, acompanhando tal personagem durante toda a duração do filme. Dessa forma, a trilha sonora de Raffertie trata a própria substância como um personagem do filme.

Toda vez que ela ou sua logomarca aparecem no filme, o leitmotiv é tocado. Igualmente, nas situações em que a substância está envolvida ou será utilizada, o leitmotiv também é tocado nos lembrando que ela está ali. Dessa forma, ela nem precisa aparecer. Nesse sentido, o leitmotiv composto por Raffertie funciona mais ou menos da mesma forma como o tema criado pelo genial John Williams para substituir o tubarão em Tubarão (1975).

O leitmotiv composto por Raffertie traz para o espectador uma sensação de urgência e perigo, já antecipando as consequências que serão trazidas pelo uso da substância. Aliás, esse leitmotiv é tão bom que acabou virando o tema oficial do filme. Toda vez que você o escuta, você sabe que é uma referência direta A Substância. É possível até imaginar que esse leitmotiv fique para a posterioridade e seja lembrado ainda por muitos anos.

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Mas para além da trilha sonora em si, a diretora Coralie Fargeat também utiliza muitas “distorções sonoras” em A Substância principalmente para destacar o que ela precisa que seja destacado em uma determinada cena. Por exemplo, na famosa cena do almoço entre Elisabeth Sparkle e o produtor Harvey, Fargeat destaca propositalmente os sons da mastigação de Harvey e também do camarão sendo comido, amassado e manipulado.

Isso tudo é feito propositalmente para destacar a suculência do alimento e também a falta de educação e o caráter de homem crú de Harvey. Isso, junto com os close-ups extremos no personagem, ajudam a deixar claro que Harvey é alguém grosseiro, mal-educado, ignorante. Um homem que, apesar de comer camarão, não tem qualquer refinamento.

Fargeat também dá bastante destaque sonoro as botas de Harvey. O personagem usa frequentemente botas de couro, no estilo cowboy, e a diretora em diversas cenas aumenta o volume dos passos de Harvey, para destacar a chegada do personagem, quase como se ela tentasse destacar o porte físico ou a imponência do personagem, ou mesmo antecipar a sua entrada em cena para o espectador. O certo é que por vezes, o barulho das botas de Harvey lembram bastante o barulhos das botas de pistoleiros prontos a duelar em filmes faroeste.

Outros exemplos de momentos em que o som é propositalmente “distorcido” ou destacado também existem. Como, por exemplo, na cena do “nascimento” de Sue, quando Coralie Fargeat destaca um som líquido quase como se a personagem fosse um bebê saindo do útero de sua mãe ainda coberto de líquido amniótico. Além disso, nessa mesma cena, a diretora também escolheu dar bastante destaque a respiração da personagem, exatamente para destacar esse caráter de nascimento da cena.

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Existem inúmeras ocasiões em que esse expediente é utilizado, sempre com o objetivo de destacar para o espectador aspectos da cena ou para construir o clima que a diretora quer que o espectador sinta. Na cena em que Elisabeth Sparkle vai buscar a substância pela primeira vez, é claro o destaque que Fargeat dá aos sons típicos daquele local, como gatos miando e barulhos de sirenes, por exemplo. Isso porque, a diretora quer deixar claro o caráter isolado e até perigoso do local em que Elisabeth está indo para buscar a tal substância. Dessa forma, fica claro o que a personagem está disposta a fazer para conseguir o que quer.

Demi Moore como Elisabeth Sparkle já deformada em A Substância (2024). Distribuição: Mubi.
Demi Moore como Elisabeth Sparkle já deformada em A Substância (2024). Distribuição: Mubi.

As cores também são outro elemento importantíssimo de A Substância. Desde os corredores vermelho carmim das paredes dos estúdios onde Elisabeth Sparkle (e depois Sue) grava seu programa, passando pelo azul do apartamento de Elisabeth até chegar ao branco profundo do banheiro da personagem e o amarelo da jaqueta que ela usa sempre ou o rosa choque dos figurinos de Sue, tudo está ali por um motivo. O rosa do figurino de Sue está ali, claramente, para destacar a feminilidade da personagem.

Já o vermelho dos corredores em A Substância lembra bastante a cor onipresente em Suspiria (1977), clássico do terror dirigido pelo cineasta italiano Dario Argento. É bem provável que Coralie Fargeat tenha bebido da mesma fonte que Argento. Até porque, A Substância é um filme, como mencionado antes, totalmente simbólico, uma alegoria. E nesse sentido, as cores estão alí para passar uma mensagem ao público. Se o figurino rosa de Sue quer transmitir uma ideia de feminilidade, o amarelo da jaqueta de Elisabeth Sparkle quer dar a personagem uma aparência super-heroíca.

As cores de A Substância são complementadas pelos ângulos de câmera escolhidos por Fargeat para cada cena. Curiosamente, a diretora explora bastante os close-ups extremos e os planos abertos. A cineasta quase não uso o famoso “plano americano”, comum no cinema comercial. Fargeat também utiliza muito a câmera de cima para baixo, de lado e em outras posições pouco convencionais. Isso ajuda a criar um estranhamento no espectador e, por isso, ajuda também no caráter exagerado, satírico e alegórico do filme.

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Sucesso de público e crítica

A Substância estreou oficialmente em 19 de maio de 2024, sendo exibido pela primeira vez no Festival de Cannes onde, inclusive, concorreu a prestigiosa Palma de Ouro. O filme acabou perdendo esse prêmio para Anora (que também venceria o Oscar de Melhor Filme), mas venceu o de Melhor Roteiro. Desde sua estreia no festival, A Substância foi recebido com entusiasmo e elogios pela crítica especializada.

Considerado um dos mais criativos, inteligentes e bem escritos filmes do ano, A Substância foi elogiado por seus aspectos técnicos, principalmente, maquiagem e efeitos práticos e também pela atuação de seu elenco, com destaque para a performance de Demi Moore. Desde a estreia de A Substância, o trabalho de Moore no filme tem sido considerado o melhor de toda a sua carreira. Não à toa, a atriz foi indicada a Melhor Atriz em todas as principais premiações da temporada, incluindo o Oscar, o Globo de Ouro e o BAFTA, vencendo a maioria deles.

A Substância também ajudou a revitalizar o interesse em filmes de terror corporal, um subgênero do terror que muitas vezes não recebe muito reconhecimento nem do público e nem da crítica especializada. A produção se tornou apenas o sétimo filme de terror em quase 100 anos de existência do Oscar a ser indicada a Melhor Filme, categoria mais importante da premiação mais importante do cinema mundial.

Demi Moore como Elisabeth Sparkle já bastante deformada em A Substância (2024). Distribuição: Mubi.
Demi Moore como Elisabeth Sparkle já bastante deformada em A Substância (2024). Distribuição: Mubi.

Quase que unanimemente elogiado pela crítica especializada, A Substância mantêm atualmente uma taxa de aprovação de 89% no Rotten Tomatoes, principal agregador de críticas especializadas da internet. Além disso, o filme também foi abertamente elogiado por inúmeros cineastas, incluindo Ana Lily Amirpour, Edward Berger, Davy Chou, Kelly Fremon Craig, Robert Eggers, Adam Elliot, Hannah Fidell, Michael Gracey, Kitty Green, Laurel Parmet, Rich Peppiatt e Juel Taylor. A Substância foi também considerado um dos melhores filmes do ano por diversos veículos de imprensa e críticos de cinema importantes.

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O sucesso com a crítica especializada também se repetiu com o público. Produzido a um custo estimado em cerca de 18 milhões de dólares, A Substância arrecadou uma bilheteria estimada entre 77 milhões e 82 milhões de dólares, ou seja, cerca de quatro vezes mais do que seu custo de produção. A Substância também se tornou dono da maior bilheteria da história do Mubi, plataforma de streaming que assumiu a distribuição do filme, depois que a Universal Pictures abandonou a distribuição do longa-metragem quando Coralie Fargeat, que possuía direito ao corte final, se recusou a fazer as mudanças que o estúdio exigiu para lança-lo nos cinemas.

Fica claro que Fargeat estava certa em não aceitar tais mudanças, já que A Substância foi um grande sucesso de crítica e público e teve uma influência significativa no cinema produzido em 2024. Além disso, é muito provável que a obra continuará a ter uma grande influência no terror, e também fora dele, nos próximos anos.

Conclusão

A Substância foi um dos melhores e mais elogiados filmes lançados em 2024. É evidente que o filme foi influenciado por diversos clássicos do cinema, como 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), O Enigma de Outro Mundo (1982), A Mosca (1986), Barton Fink – Delírios de Hollywood (1991) e Cidade dos Sonhos (2001). É evidente também que A Substância explora diversos temas do ponto de vista feminino e usa a sátira e o exagero para criticar a sociedade contemporânea e a forma que ela enxerga as mulheres, principalmente aquelas com mais de 50 anos de idade.

Margaret Qualley como Monstro Elisasue, o "produto final" de A Substância (2024). Distribuição: Mubi.
Margaret Qualley como Monstro Elisasue, o “produto final” de A Substância (2024). Distribuição: Mubi.

Ironicamente, A Substância explora a nudez e a sensualidade em níveis quase que pornográficos, como se fosse um filme dirigido por homens para o público masculino, mas o faz justamente para criticar a exploração do corpo feminino e a objetificação da mulher como um todo. Por tudo isso, vale muito a pena assistir a A Substância de mente aberta. Já que esse está longe de ser um filme convencional, como outros produzidos em Hollywood.

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