O Papa está morto e nós acompanhamos o Decano do Colégio dos Cardeais, o Cardeal Thomas Lawrence, pelas ruas de Roma, enquanto ele caminha apressado em direção a residência papal. É assim que começa Conclave, filme que se tornou um dos mais elogiados e premiados filmes de 2024. Nas próximas duas horas, o espectador irá acompanhar, não apenas o conclave para a escolha do novo Papa, mas todos os preparativos para ele por meio do ponto de vista de Lawrence, personagem brilhantemente interpretado por Ralph Fiennes.
Já antes do início do conclave os mistérios começam. O que foi dito na última reunião que o Papa teve? O Prefeito da Casa Pontifícia, arcebispo encarregado de cuidar da residência papal, alega que o santo pontífice exigiu a renúncia de um cardeal que é um dos principais candidatos ao papado. O cardeal, obviamente, nega. Do nada, surge outro cardeal cuja existência era desconhecida por todos, menos pelo Papa. Ele poderá ou não participar da eleição? Eis que surge a questão.
Antes mesmo que o conclave comece, e todos os cardeais sejam totalmente isolados do mundo exterior, começam as picuinhas e a politicagem. Logo fica claro que existem quatro favoritos principais na eleição para se tornar o próximo Papa: Aldo Bellini, um cardeal liberal norte-americano interpretado por Stanley Tucci; Goffredo Tedesco (Sergio Castellitto), um cardeal tradicionalista italiano que acredita que a Igreja e o ocidente estão indo para o caminho errado; Joseph Tremblay (John Lithgow), um cardeal canadense de viés aparentemente mais moderado e Joshua Adeyemi (Lucian Msamati), um consevador cardeal nigeriano.
Desde o início Lawrence parece ser mais simpático a Bellini, que é seu amigo pessoal. Apesar do pano de fundo religioso, a disputa pelo papado se desenrola como se fosse uma eleição comum em que vale tudo pela vitória. Até mesmo, desmoralizar os concorrentes, revelando segredos do passado. Ou mesmo, utilizar acontecimentos externos ao conclave para angariar votos. Como o próprio Bellini diz, é uma guerra e, por isso, vale tudo para vencê-la.
Conservadores querem impedir a vitória dos liberais e os liberais querem impedir, a qualquer custo, a vitória dos conservadores. O que torna ainda mais interessante a disputa é o fato de que a maioria dos concorrentes alí não terá outra chance de ser Papa. Já que, assim como ocorre na vida real, o papado é algo que dura até a morte do Papa eleito, o que pode levar décadas para ocorrer. Portanto, aquela é uma chance única para todos os candidatos.
É nessa toada que o enredo do filme vai se desenrolando e a cada momento, Thomas Lawrence vai descobrindo novas informações sobre os principais candidatos ao papado. Sua principal fonte de informação é o Monsenhor Raymond O’Malley (Brían F. O’Byrne), seu secretário pessoal e a pessoa que por não estar participando do conclave está livre para fazer as investigações que Lawrence o pede para fazer.
Apesar de sua participação pontual, O’Malley é um dos personagens mais importantes de Conclave, já que funciona como o principal elemento que faz a história andar. Já que o personagem principal, o Cardeal Lawrence, está preso no conclave e não pode ter acesso ao mundo exterior. Apesar disso, Lawrence consegue sozinho fazer uma das descobertas mais importantes para o enredo do filme ao entrar, sem permissão, no quarto do falecido Papa.
Aos poucos, cada um dos candidatos principais vai perdendo força e deixando de ser competitivo, até que fica claro que o próprio Lawrence se tornou, ele próprio, um candidato viável ao papado. Isso devido a sua coragem para enfrentar outros cardeais e para falar o que ele acredita que deve ser falado. Coragem essa, que falta a seu amigo Aldo Bellini.
Essa mudança no status de Lawrence de simples coordenador do processo eleitoral, para um de seus principais candidatos é feito de forma brilhante, quando o próprio Lawrence para de votar em Bellini e começa a votar em si mesmo. Ele também aceita o fato de que talvez possa se tornar Papa ao confessar para Bellini que já tem um nome em mente se acaso for eleito. Como sabemos, todo Papa escolhe o nome pelo qual será conhecido durante seu Papado.
O roteiro de Conclave usa o voto de Lawrence de forma inteligente. Já que ele, como Decano do Colégio dos Cardeais é sempre o primeiro a votar, o filme escolhe mostrar em quem ele votou sempre que essa informação for importante para o desenrolar da história. Apesar de Lawrence não ser inicialmente o favorito a vitória, ele é sempre colocado como candidato viável pelo roteiro do filme.
Até porque, na vida real, o Decano do Colégio dos Cardeais é considerado o segundo dentro da estrutura da Igreja, ou seja, uma espécie de vice-papa e, portanto, quando elegível, ele será sempre um candidato viável ao papado. O Papa Bento XVI, por exemplo, ocupou essa posição antes de ser eleito Papa, em 2005.
Conclave – Um filme alicerçado em roteiro, direção e interpretação
Conclave é um filme que se baseia no tripé que, geralmente, gera obras de qualidade: roteiro, direção e interpretação. Assim sendo, Conclave se alicerça em um roteiro muito bem escrito por Peter Straughan e baseado no livro de Robert Harris. Straughan concebeu um roteiro muito bem encaixado em que um acontecimento leva a outro, deixando o espectador sempre sedento por mais informação e, dessa forma, construiu um bom suspense. Tudo como deve ser em um bom thriller.
Straughan esconde cuidadosamente fatos aqui e ali que depois serão usados no final do filme. Além disso, o próprio conclave é retratado da forma mais realista possível em um filme cujo principal objetivo é gerar suspense e cujo próprio conclave é um elemento de fundo, mas que ao mesmo tempo funciona quase como um dos personagens do filme. É claro que Conclave usa diversas licenças poéticas, mas mesmo assim, consegue ser realista na medida do possível.
Além disso, como todos os filmes que envolvem a Igreja Católica, Conclave é cheio de simbolismos. Cada fala de cada personagem é carregada de simbolismos. A homilia de Lawrence na abertura do conclave, o discurso de Tedesco quando um evento inesperado interrompe a processo de eleição do novo Papa, a resposta de Vincent Benitez, cardeal misterioso que ninguém sabia da existência, ao discurso de Tedesco.
Tudo que acontece no filme é carregado de simbolismo e críticas sociais e políticas. Nada está alí por acaso, todos os elementos de Conclave são colocados alí intencionalmente. Apesar de mostrar a hipocrisia de alguns cardeais e mostrar também que o conclave não tem nenhuma diferença, pelo menos em termos leigos, em relação a nenhuma outra eleição comum, o filme não cai em clichês comuns desse tipo de produção. Ou seja, demonizar ou criticar a Igreja Católica de forma simplória.
Aliás, apesar de crítico, Conclave tenta não fazer tantos juízos de valores em relação aos candidatos e nem ao próprio processo, ele apenas o apresenta para o público. Aliás, por isso também, não existe aquele velho maniqueísmo do bem contra o mal. Existem apenas interesses e todos eles são legítimos. Tedesco, o cardeal mais tradicionalista, é tão humano quanto Bellini, o cardeal mais liberal. Eles apenas pensam de formas diferentes.
Aliás, Bellini é mostrado como alguém muito mais político e, de certo modo, maquiavélico do que Tedesco. Sempre com um plano para tudo, sempre com uma segunda intenção, sempre em reuniões secretas a meia-luz. Disposto a esconder a verdade para evitar que seu “inimigo” seja eleito. Tão engajado na luta política que está disposto a ofender amigos e quebrar as promessas que fez como religioso. É claro que acompanhamos mais Bellini do que Tedesco, já que o primeiro é amigo pessoal de Lawrence, que é quem nos guia pela história.
Até mesmo Lawrence, apesar de aparentemente não querer ser Papa, lá no fundo de sua mente tem esse sonho. A questão é que ele encara isso mais como uma missão do que como um desejo e também não coloca isso como prioridade. Sua prioridade é garantir que o cardeal ideal seja eleito Papa. Que não seja algum com “podres” que depois serão usados contra a Igreja Católica que ele tanto ama. Por isso também, ele é provavelmente o mais próximo de um herói que Conclave nos entrega.
E temos também Vincent Benitez, personagem misterioso que ninguém sabe de onde surgiu. Cardeal nomeado em segredo (“in pectore”) pelo Papa antes de sua morte. Benitez começa pequeno, com participações pequenas na primeira metade do filme, quase sempre aconselhando Lawrence e apoiando sua eleição a Papa, mesmo que o próprio Lawrence rechace essa ideia. Na segunda metade de Conclave, Benitez cresce em importância e é peça fundamental no desfecho da trama.
Desfecho, aliás, que é a parte mais polêmica e, provavelmente, mais fraca do roteiro de Conclave. Um final surpreendente que só surpreende aos mais desavisados, já que as pistas estão lá o tempo todo. E que tenta ser simbólico, sem ser muito clichê e piegas, mas que não consegue alcançar de todo esse objetivo. Apesar de tudo isso, ele não é capaz de tirar a beleza de um filme muito bem construído durante quase duas horas de duração.
Além de seu roteiro bem escrito, Conclave também é um ótimo estudo de personagem. Isso porque, todos os seus personagens são muito bem construídos, até mesmo aqueles menores. Mas tudo isso seria desperdiçado se não fossem as brilhantes interpretações do elenco de Conclave, que aliás, é provavelmente, a maior qualidade do filme.
Liderados por Ralph Fiennes, todos os membros do elenco de Conclave estão impecáveis, até aqueles que tem papéis pequenos no filme. O destaque, é claro, é o próprio Fiennes que de certa forma carrega o filme nas costas, já que todo o enredo está focado em seu personagem. Um filme como Conclave sem um ator talentoso como protagonista poderia dar muito errado. Felizmente, Fiennes é um dos melhores atores em atividade atualmente.
Depois dele, temos também Stanley Tucci, como o Cardeal Aldo Bellini. Personagem que depois de Lawrence é o que mais recebe tempo de tela. Como sempre, Tucci está muito bem no papel, o que não surpreende ninguém, já que todos conhecem seu talento para a atuação. Outros destaques masculinos, são o ator zimbabuano Lucian Msamati, como o Cardeal Joshua Adeyemi, o ator italiano Sergio Castellitto, no papel do Cardeal Goffredo Tedesco e o mexicano Carlos Diehz, como cardeal Vincent Benitez e, é claro, o ator norte-americano John Lithgow, no papel do Cardeal Joseph Tremblay.
Curiosamente, esse é o primeiro longa-metragem de Benitez, que antes de se tornar ator foi arquiteto por mais de 30 anos. Já o maior destaque feminino de Conclave é a veterana atriz italiana Isabella Rossellini, que interpreta a Irmã Agnes, chefe das freiras que são responsáveis por preparar a alimentação e cuidar da arrumação dos locais onde os cardeais se reúnem e também se hospedam durante o conclave. Rossellini tem pouco tempo de tela, mas seu personagem acaba desempenhando um papel importante no enredo do filme e as poucas cenas de Rossellini são sempre de qualidade inquestionável.
Além de Irmã Agnes, a única outra personagem feminina com algum destaque no filme é a Irmã Shanumi, interpretada por Balkissa Maiga, que aparece em praticamente apenas uma cena do filme, mas que tem bastante importância no desenrolar do enredo de Conclave. A ausência de personagens femininas no filme é esperada, já que apenas cardeais votam nos conclaves e apenas homens podem ser cardeais. Por isso também, o diretor Edward Berger escolheu um atriz de renome para interpretar o único personagem feminino realmente constante do filme.
Aliás, de nada adiantaria um bom roteiro e atuações brilhantes do elenco, se não fosse o trabalho de um bom diretor e Edward Berger faz esse trabalho espetacularmente. Berger, que é nascido na Alemanha, tem mais de 30 anos de carreira, mas começou a se destacar apenas em 2014, com o drama Jack (2014), que estreou em competição no Festival de Berlim. Em 2022, o diretor se tornou mundialmente conhecido ao dirigir a terceira adaptação para o cinema do épico antiguerra Nada de Novo no Front (2022).
Seu trabalho naquele filme foi extremamente elogiado e é possível dizer que seu trabalho em Conclave não fica atrás. A enorme diferença entre os dois filmes apenas reforça a noção de que Berger é um dos mais talentosos diretores a surgir nos últimos anos. Em Nada de Novo no Front, o cineasta teve que dirigir cenas enormes, com explosões, tiroteios e todo o drama intenso que apenas a guerra trás. Em Conclave, as cenas são muito mais sutis e o drama muito mais silencioso. Mesmo assim, Berger faz um ótimo trabalho nos dois filmes.
Conclave – um filme com valores de produção de qualidade inquestionável
Apesar de ser um filme que se alicerça bastante no roteiro de Peter Straughan, na direção de Edward Berger e na atuação de seu elenco, Conclave não deixa a desejar nos aspectos técnicos e seus valores de produção são de qualidade inquestionável. Não a toa, Conclave foi um dos filmes com mais indicações recebidas nessa temporada de premiações. Um dos aspectos que mais chama a atenção logo de cara no filme é sua direção de arte.
Os cenários são incrivelmente realísticos e reproduzem com grande precisão diversos locais do Vaticano. O grande destaque é a Capela Sistina, onde efetivamente ocorrem as votações para escolha do novo Papa e que foi reproduzida em detalhes em estúdio. O trabalho é tão bem feito e detalhado que o espectador desavisado pode até mesmo acreditar que as filmagens foram feitas em locação. Além disso, os objetos de cena também são incrivelmente bem feitos, reproduzindo com precisão aqueles utilizados em um conclave real.
A fotografia de Conclave, que ficou a cargo do veterano diretor de fotografia francês Stéphane Fontaine, é outro destaque do filme. Fontaine, que tem quase 40 anos de carreira e esteve a frente da direção de fotografia de filmes importantes, como Jackie (2016), Elle (2016), Capitão Fantástico (2016) e O Profeta (2009), só para citar alguns, usa muito bem o contraste entre as cores vivas das vestimentas dos cardeais e o ambiente em volta deles, quase sempre sóbrio.
Fontaine também consegue destacar muito bem a Capela Sistina, uma exceção em meio a essa sobriedade e também trabalha muito bem a dicotomia entre luz e escuridão. Os momentos em que o Cardeal Lawrence está só e pensativo, ou os momentos de conluio político ou de crise são sempre retratados sob as sombras e na penumbra. Em contraste estão os momentos a céu aberto sempre iluminados e destacando as batinas vermelhas dos cardeais.
Aliás, o figurino de Conclave é mais um destaque do filme. As vestimentas do cardeais são de uma perfeição incrível, assim como também são as dos outros religiosos que aparecem em cena, mesmo que brevemente. O mais incrível é o número de figurinos que tiveram que ser produzidos para o filme, já que são mais de uma centena de cardeais e mais algumas dezenas de outros personagens. Por isso, o trabalho de Lisy Christl é ainda mais impressionante. A figurinista alemã, no entanto, é experiente e já trabalhou com o próprio Edward Berger, em Em Nada de Novo no Front, e também com outros diretores de renome, como Michael Haneke e Terrence Malick.
Há ainda que se destacar a montagem e a trilha sonora de Conclave. Até porque, esses dois aspectos estão entre os principais pontos fortes do filme. Volker Bertelmann, que compôs toda a música para Conclave, preferiu uma aproximação mais experimental em relação ao filme ao invés de escolher a segurança da música clássica ou eclesial, que seriam as apostas mais seguras nesse caso.
O músico também preferiu compor temas para situações específicas e não para personagens em particular, o chamado “Leitmotiv”, algo comum nas trilhas sonoras atuais. Além disso, Bertelmann também incorporou polirritmia a trilha sonora de Conclave, afim de refletir os conflitos entre as facções que brigam pelo papado. Todas essas apostas deram muito certo e Bertelmann acabou por compor uma das trilhas sonoras mais elogiadas de 2024.
Já a montagem de Conclave ficou a cargo do montador irlandês Nick Emerson. Com mais de 20 anos de carreira, Emerson já trabalhou em filmes, como Lady Macbeth (2016) e Estrelas de Cinema Nunca Morrem (2017). No entanto, é inegável que seu trabalho de maior destaque até agora tenha sido em Conclave. Sua capacidade de dar um ritmo por vezes frenético e por vezes bucólico ao filme, fez com que Emerson recebesse seu primeiro BAFTA e também fosse indicado ao Oscar por seu trabalho em Conclave.
Conclusão
Conclave é uma mistura de uma história bem contada, ótimas interpretações, direção firme e valores de produção impecáveis. Além disso, o filme é ácido em seu humor, mas também dramático na seriedade com que aborda as consequências da escolha de cada cardeal no filme. Dessa forma, o filme funciona como um bom thriller, deixando o espectador sempre interessado no que vai ocorrer na próxima cena, ao mesmo tempo em que tenta ser o mais preciso possível na forma como retrata o processo de escolha de um novo Papa. É claro que Conclave tem seus defeitos, como aliás, quase todos filmes têm. No entanto, é seguro dizer que suas qualidades são muito maiores.
Por isso, se você tiver a oportunidade, não deixe de assisti-lo. É importante lembrar, que escrevemos essa análise sem spoilers e, por isso, não pudemos nos aprofundar muito nos aspectos simbólicos do filmes, já que isso requereria que revelássemos aspectos do enredo de Conclave. Se você já assistiu a Conclave deixe seu comentário abaixo. Se você quiser também opinar sobre o texto, comente abaixo. Seu comentário é muito importante para nós.