Flow segue a trajetória silenciosa, porém expressiva, de um gato solitário em um mundo inundado por um dilúvio apocalíptico. Depois de escapar por um triz da inundação e perder sua antiga cabana, ornamentada com esculturas de madeira de gatos, o felino se refugia em um barco à deriva, onde se junta a uma tripulação inusitada composta por uma capivara serena, um lêmure peculiar, um labrador fiel e um jovem pássaro-secretário em atrito com seu grupo inimigo.
Durante a jornada, o grupo se depara com conflitos internos, encontros com seres fantásticos, como uma baleia mutante, e sonhos que evidenciam tanto a vulnerabilidade quanto a resiliência da existência em um mundo em constante mudança. À medida que o nível das águas oscila, desvendando cidades submersas e florestas deformadas.
A falta de diálogos intensifica a força visual e emocional da história, que é formada através de pequenos gestos, olhares e gestos de solidariedade. O ápice, caracterizado por uma vivência quase espiritual entre o gato e o pássaro-secretário, enfatiza o caráter simbólico da viagem: a procura não se limita à sobrevivência, mas também à sensação de pertença.
Quando a água finalmente se afasta, revelando a terra em pedaços e nua, o gato reencontra seus companheiros, agora ligados por tudo o que experimentaram. Em um ato de compaixão, conforta a baleia que está presa, contemplando os enigmáticos pilares de pedra no céu. Neste momento de tranquilidade e aceitação, o seu reflexo na água mostra mais do que uma simples imagem, revela quem ele realmente se transformou. Uma sequência após os créditos indica: a vida, como ela é.
Direção de Flow
A pricípio, “Flow” é uma iniciativa independente, produzida pela Dream Well Studio. A animação foi criada e dirigida por Gints Zilbalodis, que não havia dirigido outros filmes até a produção dessa obra. O cineasta, se mostrou grandiosamente versátil, participando diretamente desde o roteiro, até a trilha sonora. “Flow” se tornou uma das animações mais aclamadas dos cinemas e, em pouco tempo, conquistou espaço na indústria.
O próprio nome do filme remete ao significado da água, algo fluido, flexível, relaxante. Em resumo, o diretor soube explorar muito bem efeitos sonoros, com o barulho de água caindo, o vento batendo nas folhas, isso torna o filme uma experiência sensorial incrível. Além disso, a composição apresenta cores com uma saturação pouco vibrante, e com valores tonais bem escuros, o que torna o filme ainda mais palatável.
Além disso, o roteiro que Zilbalodis criou também tem um forte apelo para o mistério, um exemplo disso é a casa onde o gatinho vive. Em determinado momento, a câmera passeia pelos cantos da casa mostrando estátuas de madeira, em formato de gato, desenhos, e serragem. Em outras palavras, a trama levanta várias perguntas para o espectador como: “Quem era o dono da casa?” “O que explica a sua ausência?”. Isso mostra a perspicácia de Zilbalodis em construir uma história instigante.
Em que esse filme foi inspirado?
Flow foi baseado em ideias de infância do próprio diretor. Além disso, Zilbalodis citou influências de obras como Future Boy Conan, de Hayao Miyazaki, e dos filmes de Jacques Tati, especialmente na abordagem visual e na ausência de diálogos.
Com base nessas referências e recordações pessoais, “Flow” se sobressai como uma animação que vai além da simplicidade da fábula, abordando, acima de tudo, temas universais como coexistência, empatia e adaptação. Dessa forma, Zilbalodis, sem usar palavras, cria um universo expressivo onde cada movimento e silêncio possuem um significado, uma opção estética que evoca tanto a sensibilidade poética quanto a precisão técnica.
Melhores cenas do filme
A princípio, a proposta do filme parece ser testar as 7 vidas do pobre gatinho, mas com o passar das cenas, vemos que há mais profundidade na narrativa, ainda que nenhuma palavra seja dita. Algumas das melhores cenas dessa animação incluem:
Correnteza forte: O gato é perseguido por cachorros, até que todos sejam carregados um uma forte correnteza. Com muita dificuldade, o gato consegue se salvar. O único cão, que se salva, olha para correnteza procurando seus amigos e percebe que eles não retornarão, e logo depois olha para o outro lado e percebe que o gato já está seguindo o seu caminho. É nessa cena que podemos notar o que o filme quer nos propor.
Abdução: Na extremidade de um pilar, o gato e o pássaro-secretário se elevam quando a força da gravidade se dissipa. Uma passagem luminosa se descortina no céu. O pássaro se dirige para a luz e se apaga. O felino, suspenso por um momento, desliza suavemente até o solo. Em silêncio, o portal se fecha. A cena se destaca pelo ofuscante show de luzes, e cores no tom de azul claro. A cena também é um dos maiores mistérios do filme.
A água dá, também tira: Durante todo o filme uma criatura aquática gigante, semelhante a uma baleia, ajuda o gato e os animais do barco, ainda que não intencionalmente. No fim, quando a inundação acaba, todos ficam seguros menos essa “Baleia”, e o gato que antes não se importava com nada além de si mesmo, lamenta o trágico destino da criatura.
A jornada do pequeno gato, é marcada por encontros e despedidas, o que dá ao filme um tom de drama. No fim, a ausência de explicações verbais torna cada gesto e olhar ainda mais eloquente, permitindo que a emoção fale por si.
Orçamento e bilheteria
US$ 3,7 milhões é o custo total da melhor animação de 2025. Flow é um dos maiores tapas nas grandes corporações de entretenimento. Flow parece quebrar o estigma até mesmo de que a melhor forma de cortar custos é substituir a mão de obra humana por IA. Pesquisando sobre as animações com baixo orçamento, não consegui identificar nenhuma que tenha feito tanto sucesso e que ao mesmo tempo tenha repercutido tanto.
A consequência dessa repercussão foi um desempenho massivo nas bilheterias, se comparado ao seu custo. O longa arrecadou US$ 36 milhões mundialmente, superando em quase 10 vezes o valor investido. Por fim, essa produção se consolidou como uma das mais rentáveis do ano.
Trilha sonora de Flow
Como se já não fosse o bastante ter roteirizado e dirigido o filme, Gints Zilbalodis também compôs a trilha sonora de “Flow” em contribuição com Richards Zalupe. O álbum de Flow abrange 23 faixas, que contribui muito para nossa imersão naquele mundo devastado pela água. Entre as músicas, destaca-se “Homem” como a faixa principal.
Essa música encapsula a essência emocional da jornada do protagonista, refletindo temas de solidão, descoberta e conexão. A música “Home” mescla cordas delicadas e melodias percussivas delicadas, estabelecendo um ambiente que se alinha perfeitamente à estética visual do longa-metragem. Muitas das emoções que o filme passa, derivam da solidão. Dessa maneira, as músicas desse filme realçam ainda mais o tema do pequeno gatinho. O silêncio somado com a música já foi explorado várias vezes no cinema, e é uma mistura que dá muito certo. Por exemplo, “Wall-E”, “A Canção do Oceano”, “A Tartaruga Vermelha”. Por isso, o elemento musical é um dos pontos mais fortes desse filme.
Conclusão
Por fim, o filme termina com o gato, a capivara, o cachorro, e o lémure, encarando o próprio reflexo na água. Parece que ao encarar a água, eles podiam comparar o que eram antes, e o que se tornaram. Flow é um filme bastante reflexivo, o silêncio e a vastidão da água possibilita que criemos a nossa própria narrativa, e os nossos diálogos. Podemos atribuir nossos pensamentos ao elemento narrativo, ao mesmo tempo em que a trama nos conduz a um objetivo, a transformação. Até a próxima!